Flávia Camargo de Araújo *
De 1997 a 2002, quando cursei minha primeira graduação em Engenharia Agronômica na Universidade de Brasília (UnB), as universidades públicas tinham um perfil muito diferente. A maior parte dos colegas com os quais convivi vinham de escolas particulares, pertenciam em grande número às classes médias e altas e eram, sobretudo, brancos. Mas, assim como hoje, as universidades públicas eram instituições de grande relevância para o cenário nacional tanto para a formação de profissionais qualificados quanto para a realização de pesquisas nas mais diversas áreas. Não era à toa que os filhos das famílias mais abastadas pagavam cursinhos caríssimos para que seus filhos pudessem passar nos vestibulares dessas universidades.
Em 2011, fui cursar minha segunda graduação em Ciências Econômicas também na UnB e tive o prazer de encontrar uma universidade mais viva, mais diversa e mais estruturada tanto material quanto intelectualmente. A UnB tinha não só diversificado o número de cursos, ampliado seu número de vagas, construído novos prédios, se expandido territorialmente para outras áreas do Distrito Federal, como também havia diversificado o seu perfil. A UnB não era mais a universidade predominantemente branca que eu havia conhecido e tinha se tornado um espaço mais plural em que negros, pardos e indígenas tinham ganhado voz e espaço.
Por meio de uma série de ações afirmativas e diversas políticas governamentais houve um processo de democratização das universidades públicas e eu tive a sorte de ver e vivenciar uma parte dessas mudanças. Embora ainda precisasse avançar muito, o tripé da universidade (ensino, pesquisa e extensão) havia se fortalecido e a minha percepção era de que a universidade tinha se tornado mais do que isso. Ela havia se tornado um espaço mais amplo de transformação social, inclusive retratando mais claramente dentro dela as contradições da nossa sociedade.
A riqueza dessa minha última experiência na UnB me permitiu ver in loco a conexão entre acesso à educação superior e transformação social. Certa vez ouvi de um professor que “as soluções efetivas para os nossos problemas sociais, ambientais e econômicos não viriam de nós da elite e sim das camadas mais desfavorecidas da população brasileira”. Meus últimos anos na UnB me ajudaram a entender melhor o que dizia esse professor. O aumento do acesso ao ensino superior pelos alunos das camadas mais pobres e excluídas da sociedade trouxe não apenas oportunidades para esses alunos e suas famílias, mas trouxe também nova vida às universidades públicas, aproximando-as mais da sociedade e de seus problemas reais e fortalecendo ainda mais o espaço universitário como um lócus importante para gerar soluções e promover ações transformadoras.
A UnB foi uma das pioneiras na inclusão das cotas raciais para acesso ao ensino superior. Os idealizadores foram os professores de Antropologia José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segato, que construíram a proposta como reação política a um caso de discriminação racial sofrido pelo primeiro doutorando negro do Departamento de Antropologia, em 1998. Após anos de discussão, em junho de 2003, foi aprovado pela universidade o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial que estabelecia que 20% das vagas seriam destinadas aos candidatos negros e previa também vagas para indígenas conforme demanda específica (VELOSO, 2018).
Por meio de lei estadual (Lei 3.524/2000), a UERJ também foi pioneira na adoção de cotas sociais para o ingresso na graduação. A partir de então diversas outras universidades seguiram o exemplo da UnB e da UERJ, cada uma adotando as medidas conforme as suas especificidades. A ampliação dessas ações afirmativas contribuiu para que em 2012 fosse aprovada a Lei de Cotas (Lei 12.711/12), ao qual determina que todas as universidades federais e institutos federais de nível técnico destinem 50% das suas vagas para alunos oriundos de escolas públicas. Metade das vagas referentes às cotas deve ser destinada a alunos com renda mensal per capita inferior a um salário mínimo e meio. Além disso, uma parcela das cotas deve ser destinada a pretos, pardos e indígenas, conforme proporção dessa população na Unidade da Federação.
A aprovação dessa lei foi fundamental para institucionalizar a política de cotas nas universidades federais em todo o país. De acordo com levantamento realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), houve ampliação de 39% da presença de estudantes pretos, pardos e indígenas provenientes de escolas públicas nas universidades federais no período de 2012 a 2016 (CARRANÇA, 2019). O gráfico 1 mostra a mudança no perfil dos alunos após a adoção de todas essas iniciativas.
Gráfico 1 – Perfil dos alunos das universidades públicas federais conforme cor ou raça.
As mudanças no ensino superior gratuito ocorreram também pelas políticas de expansão e interiorização realizadas pelo governo federal. Entre 2002 e 2014, foram criadas 18 novas universidades federais e abertos 173 novos campi, correspondendo a um aumento de 40% e 117%, respectivamente. Houve no período de 2002 a 2013, uma expansão de 431.804 no número de matrículas, representando um crescimento da ordem de 86%. A tabela 1 detalha a ampliação do número de universidades, campus e matrículas por região. Essa expansão da oferta de vagas buscou priorizar as cidades no interior do país, o número de municípios atendidos por instituições federais de ensino superior saltou de 114 para 289 municípios, ou seja, uma expansão de 153% no número de municípios.
Tabela 1. Expansão do número de universidades, campus e matrículas.
Região | Universidades | Campus | Matrículas | ||||||
2002 | 2014 | % | 2002 | 2014 | % | 2002 | 2013 | % | |
Norte | 8 | 10 | 25 | 24 | 56 | 133 | 76.779 | 128.228 | 67 |
Nordeste | 12 | 18 | 50 | 30 | 90 | 200 | 147.464 | 281.421 | 91 |
Sul | 6 | 11 | 83 | 29 | 63 | 117 | 75.985 | 157.206 | 107 |
Sudeste | 15 | 19 | 27 | 46 | 81 | 76 | 139.641 | 275.687 | 97 |
Centro Oeste | 4 | 5 | 25 | 19 | 31 | 63 | 60.590 | 89.721 | 48 |
Total | 45 | 63 | 40 | 148 | 321 | 117 | 500.459 | 932.263 | 86 |
Fonte: Simec/MEC/Censo/Inep – Adaptado de Brasil (2014).
Tanto a ampliação das instituições de ensino superior federais como as ações afirmativas descritas acima contribuíram também para aumentar o acesso da população de baixa renda às universidades públicas. De acordo com a V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES, divulgada em maio de 2019, mais da metade dos alunos das universidades públicas federais (53,5%) são oriundos de famílias com renda mensal per capita de até um salário mínimo.
Na faixa de renda mensal per capita entre 1 salário mínimo e 1,5 salário mínimo, encontram-se 16,6% dos estudantes, ou seja, em torno de 70% dos graduandos pertencem a famílias com renda mensal per capita de até 1,5 salário mínimo. Pode-se afirmar que houve uma mudança significativa do perfil socioeconômico dos jovens que têm acesso às universidades públicas. Em 1996, havia 44,3% de estudantes cuja renda familiar mensal per capita era de até 1,5 salário mínimo. Em 2014, esse percentual havia saltado para 66,2% e alcançou 70,2% em 2018, o maior patamar da série histórica (Andifes, 2019a). A tabela 2 apresenta a distribuição dos alunos por faixa de renda em 2018.
Tabela 2 – Graduandos das universidades públicas federais por faixa de renda familiar per capita em 2018.
Faixa de renda mensal familiar per capita | % dos graduandos |
Até meio salário mínimo (SM) | 26,6 |
Acima de 0,5 até 1 SM | 26,9 |
Acima de 1 até 1,5 SM | 16,6 |
Acima de 1,5 até 3 SM | 16,7 |
Acima de 3 até 5 SM | 5,9 |
Acima de 5 até 7 SM | 2,8 |
Acima de 7 até 10 SM | 0,8 |
Acima de 10 até 20 SM | 0,6 |
Acima de 20 SM | 0,1 |
Não respondeu | 3,0 |
Fonte: Andifes (2019a).
Apesar dos avanços, tanto as ações afirmativas como as políticas de expansão das universidades públicas receberam muitas críticas. Parte dessas críticas dizia respeito à queda da qualidade do ensino universitário em decorrência da seleção de alunos oriundos de escolas com menor desempenho educacional. Ainda faltam estudos de caráter mais amplo para avaliação dessa questão, mas há pesquisas em várias universidades (UnB, UERJ, UTFPR, UFBA, UFRGS) que demonstram que na maioria dos casos analisados o desempenho dos alunos cotistas é estatisticamente semelhante ao rendimento dos alunos não cotistas. Em geral, quando se observou um desempenho inferior dos cotistas foi em cursos mais concorridos. Por outro lado, também houve cursos em que os cotistas apresentaram melhor desempenho (VELLOSO, 2009; BEZERRA & GURGEL, 2011; BIEMBENGUT et al, 2018; QUEIROZ & SANTOS, 2006; BUENO, 2012).
No que tange às políticas de ampliação do ensino superior gratuito, embora tenha havido maior democratização do ensino, há várias fragilidades que podem ser consideradas. A ampliação da infraestrutura não aconteceu no ritmo adequado à expansão do número de vagas discentes e muitas obras ficaram inacabadas. Embora tenha havido contratação de um número expressivo de docentes, houve uma elevação da relação professor-aluno de 12 para 18, o que implicou em certa precarização do trabalho dos docentes, que passaram a ter menor tempo para dedicar às atividades de pesquisa e extensão, em comparação ao tempo dedicado ao ensino (GUERRA & ROCHA, 2019). Além disso, faltam avanços no que tange à permanência estudantil e às taxas de aprovação (MAGALHÃES & REAL, 2018).
Ainda que haja limitações, essas mudanças nas universidades públicas, por meio da sua expansão, interiorização e maior inclusão das populações mais desfavorecidas, tendem a fomentar transformações sociais efetivas. O ataque que hoje vemos às universidades públicas não é tão somente um ataque às universidades em si para enfraquecê-las e privatizá-las, é também um ataque às potencialidades de mudanças estruturais que as universidades públicas vêm cada vez mais representando, especialmente na última década. O pior é que o ataque vem não apenas daqueles cujas intenções são alheias ao interesse público ou dos incomodados com as mudanças trazidas pela expansão do ensino superior gratuito, mas vem também daqueles que desconhecem os enormes benefícios que as universidades públicas geram para o país.
Todos nós sabemos da importância do conhecimento científico para o desenvolvimento de uma nação, mas muitos desconhecem que mais de 95% da pesquisa científica realizada em nosso país vêm das universidades públicas (Andifes, 2019). Segundo o relatório da Clarivate Analytics (2018), o Brasil é o 13º país que mais publica artigos científicos no mundo. Não poderíamos ocupar essa posição internacional na produção científica se não fossem as universidades públicas. De acordo com o CWTS Leiden Ranking (2019), no período de 2014 a 2017, entre as 963 universidades com maior impacto científico no mundo, há 23 universidades brasileiras e todas elas são universidades públicas federais ou estaduais. No período de 2006-2009, essas 23 universidades publicaram 45.614 artigos científicos, enquanto no período de 2014-2017 foram produzidas 71.453 publicações, ou seja, houve um aumento de 56,6% na produção científica em menos de uma década.
Podemos afirmar que, entre erros e acertos, as políticas voltadas para as universidades públicas não apenas permitiram ampliar o acesso ao ensino superior de jovens negros, indígenas e quilombolas, de jovens oriundos de escolas públicas e de famílias de baixa renda, como também possibilitaram certo avanço da pesquisa no Brasil. Para além da produção científica, essas instituições públicas têm papel de destaque também na promoção da extensão universitária, prestando uma série de serviços às comunidades nas quais essas universidades estão inseridas, como ações educativas, assistência técnica e jurídica, atendimentos na área de saúde, entre outros.
Infelizmente muitos desconhecem que as universidades públicas representam hoje um dos mais importantes espaços em que “privilegiados” e “desprivilegiados” se conectam e trocam experiências e, em suas contradições, limitações e potencialidades, vão juntos se capacitando, gerando conhecimento e trazendo novos caminhos para o nosso país. Apoiar as universidades públicas é apoiar uma das mais importantes e respeitadas instituições públicas que o Brasil conseguiu até hoje construir. Ainda temos muito a avançar e, portanto, não podemos permitir que seja dado nenhum passo para trás.
Referências Bibliográficas:
Andifes. Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Relatório Executivo da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) graduandos(as) das IFES. 2019a.
Andifes – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Universidades públicas realizam mais de 95% da Ciência no Brasil. 2019b.
BEZERRA, Teresa Olinda Caminha; GURGEL, Claudio. A política pública de cotas em universidades, desempenho acadêmico e inclusão social. Sustainable Business International Journal. Número 09, ago. 2011.
BIEMBENGUT, Thais Mariane; PACHECO, Patrícia Sanez; CONINCK, José Carlos Pereira. Análise do desempenho acadêmico de cotistas e não cotistas na UTFPR – Curitiba. Cad. Pesq., São Luís, v. 25, n. 1, jan./mar. 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. A democratização e expansão da educação superior no país (2003 – 2014). 2014. Disponível em:
BUENO, Rita de Cássia. S. S. Reflexões sobre as políticas de ação afirmativa: a efetivação da reserva de vagas e o processo de inclusão dos primeiros cotistas nos cursos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UFRGS. In: II CLABES – Segunda Conferencia Latinoamericana sobre el Abandono en la Educación Superior. Rio Grande do Sul. 2012.
CARRANÇA, Thaís. Número de alunos da cota racial cresce 39% nas federais. Valor Econômico. 2019. Disponível em:
CLARIVATE ANALYTICS. Research in Brazil. 2018.
CWTS Leiden Ranking (2019).
GUERRA, Agercicleiton Coelho; ROCHA, Antônia Rozimar Machado e. Reuni no contexto das universidades federais: números, avanços e retrocessos. Revista Praxis Pedagógica. Vol. 2, n. 2, maio/ago. 2019.
MAGALHÃES, Ana Maria Silva; REAL, Giselle Cristina Martins. A produção científica sobre a expansão da educação superior e seus desdobramentos a partir do Programa Reuni: tendências e lacunas. Avaliação. Campinas/ Sorocaba – SP, v. 23, n. 02, p. 467-489, jul. 2018.
QUEIROZ, Delcele Mascarenhas; SANTOS, Jocélio Teles. Sistema de cotas: um debate. Dos dados à manutenção de privilégios e de poder. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 96, p.717-737, out. 2006.
VELOSO, Serena. Aprovação das cotas raciais completa 15 anos. UnB Notícias. 2018.
VELLOSO, Jacques. Cotistas e não-cotistas: rendimento de alunos da Universidade de Brasília. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 137, p 621-644, maio/ago. 2009.
* Flávia Camargo Araújo é engenheira agrônoma e economista formada pela UnB e mestranda em Economia na Universidade Federal Fluminense (UFF).
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