Estas operações que vêm sendo divulgadas como o meio mais eficaz de cobrança de recebíveis – entre os quais a dívida ativa – que os entes federados (união, estados e municípios) têm a receber de terceiros é uma falsa solução, pois elas são inconstitucionais e vorazes devoradoras de recursos públicos que possibilitam, inclusive, que alguns contribuintes façam uma triangulação financeira que desequilibra a concorrência e tem potencial para implodir o sistema tributário nacional. O negócio da dívida ativa funciona assim:
1. o ente transfere para uma Sociedade de Economia Mista (SEM) – de existência inconstitucional por ofender o artigo 173 da Constituição Federal – os direitos sobre os dinheiros que ele receberá quando cobrar a dívida ativa;
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2. esta SEM utiliza estes direitos para garantir as debêntures de sua emissão que venderá a restritos investidores, gerando recursos que serão parcialmente transferidos para o ente;
3. quando o ente cobra a dívida ativa, o dinheiro arrecadado deverá ser depositado no banco escolhido pela SEM para administrar a securitização a fim de reunir recursos para pagar as debêntures e todas as demais despesas da operação.
Os contratos são assinados com cláusulas surpreendentes como as que preveem:
Publicidade1. altíssima remuneração e pesadas multas caso a SEM não mantenha, com vários meses de antecedência, disponibilidades suficientes para o pagamento de debênture vincenda;
2. que o volume dos direitos sobre os dinheiros que o ente receberá quando da cobrança da dívida ativa deve superar em várias vezes o volume total das debêntures emitidas;
3. que a liquidez da dívida ativa vinculada à operação seja aferida por agência internacional de risco;
4. que o banco escolhido para administrar o negócio fique responsável pelo estabelecimento dos juros das debêntures, bem como pela fixação das multas, comissões e demais despesas que a SEM deverá pagar do iní- cio ao fim da operação;
5. e que este mesmo banco tem o direito de adquirir todas as debêntures emitidas pela SEM. Estas operações também possibilitam uma triangulação entre o ente e o contribuinte: o ente como credor da dívida ativa e o contribuinte – por si ou por preposto – como devedor da dívida ativa e como adquirente das debêntures emitidas pela SEM.
Esta possibilidade incentiva grandes contribuintes a não pagar os impostos em dia e a aguardar a inscrição do seu débito em dívida ativa ou para aderir a programas de recuperação fiscal (refis), ambas abastecedoras dos valores que são utilizados nas operações de securitização. Assim, estes contribuintes aproveitam os generosos descontos, juros baixos e suaves prestações concedidos pelos recorrentes refis e utilizam os recursos que seriam destinados ao pagamento em dia dos impostos para comprar as debêntures, que são remuneradas por altíssimos juros.
A diferença dos juros (altos nas debêntures e baixos nos refis) incentiva os contribuintes a adotarem o procedimento de forma rotineira mantendo, assim, um sequenciado fluxo alimentador da pirâmide financeira.
Aliás, o lucro destes contribuintes pode ser ainda maior se eles ou seu preposto participarem da estruturação da operação de securitização, já que a SEM paga aos envolvidos elevados prêmios, honorários, comissões e outras despesas.
Estas negociações também podem envolver bens móveis e imóveis e todos os demais créditos que o ente tem a receber de terceiros e ser realizadas por Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDC) por ele instituídos.
No Rio Grande do Sul, temos duas destas empresas: 1) a Caixa de Administração da Dívida Pública Estadual S/A (CADIP), que, mesmo sendo inconstitucional, está em atividade há vários anos e 2) a Investe POA – Empresa de Gestão de Ativos do Município de Porto Alegre S/A, que, em boa hora, amparado no trabalho do competente corpo técnico, o Conselheiro Relator Iradir Pietroski, no processo da representação feita pelo Procurador-Geral Geraldo Costa da Camino, do Ministério Público de Contas, deferiu, em 10.11.2016, medida cautelar para que a prefeitura não empreendesse os respectivos atos constitutivos até o pronunciamento posterior deste tribunal.
No artigo publicado na Revista Achados de Auditoria nº 5, defendi que a Investe POA é inválida sob os pontos de vista jurídico e social com base em argumentos que também adoto para defender a mesma invalidade da CADIP, que foi criada em 1995 para lançar debêntures e para viabilizar o programa de privatização levado a efeito pelo RS nos anos de 1996 a 1998.
Do relatório e parecer prévio do TCE/RS sobre as contas do governador do estado do exercício de 2006, extraímos que a CADIP emitia debêntures lastreadas em créditos tributários do ICMS parcelados e depositava os recursos captados no sistema integrado de administração de caixa de onde o poder executivo estadual sacava estas disponibilidades e as devolvia quando os créditos do ICMS parcelado eram recebidos pelo tesouro.
A última emissão de debêntures efetuada pela CADIP foi no ano de 2007 e estes títulos foram resgatados em 2009, portanto a CADIP está “vegetando” há mais de sete anos, mas, no final do ano de 2015, a assembleia legislativa do RS aprovou lei que autoriza o poder executivo a aumentar o capital social da CADIP em R$ 230.000.000,00.
Esta preparação para o retorno do lançamento de debêntures causa surpresa, pois estas operações estão sendo questionadas não só pelo TCE/ RS – no caso da Investe POA –, mas também pelo TCE/PR e pelo TCU; portanto este movimento merece ser investigado com profundidade, pois ele, além de ser inconstitucional, poderá provocar uma grande transferência de renda pública para pessoas privadas.
Atualmente tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que, além de visar um pretenso amparo legal para estas operações, visam permitir a novação dos créditos que o ente tem a receber, como os da dívida ativa, da dívida de parcelamentos ou de outros valores recebíveis.
O projeto de lei que cria a novação prevê que ela se dará sem a anuência do devedor e que o crédito original será extinto (possibilitando, inclusive, a emissão de certidão negativa de débitos fiscais) e substituído por um novo título com características de crédito privado emitido contra o mesmo devedor, que será vendido no mercado financeiro, normalmente, em operação de esforço restrito a qualificado investidor. Além disto, obriga o governo a responder pela existência e legalidade do título original e do novo título e a substituí-lo por outro se o crédito novado eventualmente for desconstituído.
Como estamos cansados de arcar com o custo de péssimos empréstimos contraídos por muitos entes federados e que hoje contribuem para a atual deficiência de serviços públicos, resta-nos a torcida para que os tribunais de contas redobrem a já habitual cautela na apreciação das instituições estatais que viabilizam estes tipos de operações para evitar que sejam criados enormes passivos financeiros – inclusive os ruinosos passivos ocultos – a serem pagos com mais redução dos gastos sociais e aumentos de tributos.
* Auditor fiscal aposentado do Rio Grande do Sul, é membro da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite) e fundador do Sindicato dos Funcionários do Fisco do Estado do Rio Grande do Sul (Sindifisco-RS).
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