Gilberto Bercovici * e José Celso Cardoso Jr **
Após tratar de tema relativo à inovação na administração pública durante audiência na comissão especial da PEC 32/2020,[1] realizada em 22 de junho último, a mesma comissão avançará no dia 29 de junho sobre o tema da intervenção do Estado no domínio econômico (acréscimo do art. 37-A e acréscimo do § 6º e do §7º ao art. 173 da Constituição).
Uma análise mais amiúde desses dispositivos propostos pela PEC 32/2020 revela, indubitavelmente, tratar-se de peça que visa à instauração de poderes quase absolutos do mercado sobre o Estado, do dinheiro sobre a política, da esfera e lógica privadas sobre a esfera e lógica públicas. É claro que dessa proposta de (re)desenho constitucional para pior – que pretende priorizar na formulação, implementação e gestão das políticas públicas o domínio de uma visão economicista e microeconômica de curto prazo sobre uma visão holística e macrossocial de longo prazo – não se pode esperar nada promissor para as capacidades de condução futura do país.
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Isto é, não há referências claras ao desenvolvimento da nação como objetivo último de tais reformas, mas tão somente entendimento de que a consolidação e a valorização capitalista de mercados autorregulados poderia engendrar algum tipo de “desenvolvimento”. Este, em termos do liberalismo de cassino em voga, significa coisas como maximização das rentabilidades empresariais de curto prazo, crescimento microeconômico eficiente dos empreendimentos etc. Ora, de diversas maneiras já foi demonstrado que o somatório de empreendimentos empresariais eficientes e rentáveis do ponto de vista microeconômico não é garantia (na verdade, não há evidência empírica alguma) de que engendrarão resultados agregados (mesmo que setoriais) eficazes ou efetivos do ponto de vista macroeconômico, ainda mais se olhados tais resultados sob a ótica dos empregos, rendas e tributos gerados para os demais agentes envolvidos nesse tipo de regime e processo de acumulação de capital em bases estritamente privadas.
Como se sabe, o papel do Estado no domínio econômico é alvo de inúmeros debates no Brasil. Adeptos de um Estado regulador, ou mínimo, costumam se enfrentar com os defensores de um Estado intervencionista, ou desenvolvimentista. No entanto, uma análise histórica da estrutura administrativa brasileira revela que a Constituição de 1988 recebeu um modelo de Estado estruturado sob a ditadura militar (1964-1985), ou seja, o Estado reformado pelo Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG, 1964-1967), cujas concepções de eficiência empresarial e de privilégio do setor privado já estão presentes cerca de 30 anos antes da reforma gerencial da década de 1990.[2]
O discurso oficial do regime militar já era o da ortodoxia econômica. As próprias Constituições outorgadas pelos militares, em 1967 e em 1969, chegaram, não à toa, a incorporar o chamado princípio da subsidiariedade, cuja concepção é entender o Estado como complementar, subalterno à iniciativa privada. O Decreto-Lei 200/1967, pioneiro na exigência da gestão empresarial dos órgãos administrativos, vai sobreviver à ditadura militar e continuará em vigor mesmo sob a Constituição de 1988, tendo sido reforçado pela reforma administrativa gerencialista do governo FHC e, agora, ressuscitada pela PEC 32/2020.
PublicidadeOcorre que, mundo afora, com a consolidação dos Estados desenvolvimentistas, as Constituições do século 20 incorporaram em seus textos o conflito existente entre as forças sociais, buscando abranger toda uma nova série de direitos e matérias. Apesar disso, as relações entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo são ainda difíceis. Enquanto o Direito Constitucional avançou, o Direito Administrativo continuou preso aos princípios liberais do século 21, entendendo o Estado como inimigo. Por isso, a necessidade de construção de um Direito Administrativo dinâmico, a serviço da concretização dos direitos fundamentais e da Constituição, é cada vez mais necessária. No Estado Democrático de Direito, como o instituído pela Carta de 1988, a base do Direito Administrativo apenas pode ser o Direito Constitucional, que estabelece os seus parâmetros: o Direito Administrativo é o “Direito Constitucional concretizado”.
Nesse sentido, os fins do desenvolvimento devem ser fixados pela própria sociedade nacional, como faz o texto constitucional de 1988. No entanto, a vontade política para orientar e favorecer as transformações econômicas e sociais é indispensável para impulsionar e conduzir o processo de desenvolvimento endógeno. Um dos objetivos deste processo é a homogeneização social, com a garantia da apropriação do excedente econômico pela maior parte da população. O desenvolvimento endógeno exige também a internalização dos centros de decisão econômica, a dinamização e a integração do mercado interno, com grande ênfase para o desenvolvimento tecnológico.
A soberania econômica nacional, prevista formalmente no artigo 170 da CF-1988, pretende viabilizar a participação da sociedade brasileira, em condições de igualdade, no mercado internacional, como parte do objetivo maior de garantir o desenvolvimento doméstico (artigo 3º do texto constitucional). O mercado interno, por sua vez, foi integrado ao patrimônio nacional (artigo 219 da Constituição), como corolário da soberania econômica. O significado desse dispositivo é justamente a endogeneização do desenvolvimento tecnológico e a internalização dos centros de decisão econômicos, à la Celso Furtado.
Indo além, entende-se o Estado, através do planejamento, como o principal promotor do desenvolvimento. Para desempenhar a função de condutor do desenvolvimento, o Estado deve ter autonomia frente aos grupos sociais, ampliar suas funções e readequar seus órgãos e fortalecer sua estrutura e capacidades de atuação. O papel estatal de coordenação dá a consciência da dimensão política da superação do subdesenvolvimento, dimensão esta explicitada pelos objetivos nacionais e prioridades sociais enfatizados pelo próprio Estado. Coordenando as decisões pelo planejamento, o Estado deve atuar de forma muito ampla e intensa para modificar as estruturas socioeconômicas atávicas, bem como distribuir e descentralizar a renda, integrando, social e politicamente, a totalidade da população ao processo dinâmico do desenvolvimento nacional.
Na contramão disso, no entanto, a adoção das políticas ortodoxas de ajuste fiscal e a implementação das medidas de redução do papel do Estado na economia e de atração de investimentos estrangeiros fizeram com que se tornasse necessário garantir determinadas medidas de política econômica, mesmo contra as maiorias políticas, gerando um processo de reformas constitucionais em vários países, cujo objetivo foi “constitucionalizar a globalização econômica”. Com a retórica sobre “segurança jurídica”, “regras claras”, “respeito aos contratos”, “Estado de direito” (ou “rule of law”) sendo utilizada contra qualquer atuação estatal que contrarie os interesses econômicos dominantes, instituiu-se um fenômeno de “blindagem da Constituição financeira”, ou seja, a preponderância das regras vinculadas ao ajuste fiscal e à manutenção da política monetária ortodoxa que privilegia interesses privados sobre a ordem constitucional e sobre políticas socialmente distributivas e desenvolvimentistas.
Nesse contexto, a proposta de incluir um artigo 37-A na Constituição de 1988 vai muito além da péssima técnica legislativa. A intenção da PEC 32/2020 é instituir a permissão para que os entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) firmem “instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira”. Em resumo, trata-se terceirização geral da administração pública. O regime dos serviços públicos está previsto no artigo 175 da Constituição, que determina serem eles atividades que devem ser obrigatória e diretamente prestadas pelo Poder Público. Se não forem prestadas pelo Estado, só o podem mediante concessão ou permissão e sempre precedidas de licitação. Ao prestar serviço público, o Estado, ou quem atue em seu nome por meio de concessão ou permissão, está acatando o interesse social. Os serviços públicos previstos no texto constitucional destacam-se justamente pela importância intrínseca, em dado momento histórico, para a coesão e interdependência sociais. Há aqui, portanto, uma contradição expressa entre o proposto para o artigo 37-A e o artigo 175 da Constituição. De um lado, o “liberou geral” do modelo proposto por Guedes/Bolsonaro. De outro, a preservação do interesse público e dos direitos dos cidadãos, inclusive no que diz respeito à modicidade das tarifas.
Outra aberração da PEC 32/2020 é a tentativa de incluir dois novos parágrafos ao artigo 173 da Constituição, que trata da atuação direta do Estado no domínio econômico. O proposto artigo 173, §6º prevê que: “É vedado ao Estado instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados, empresas públicas ou sociedade de economia mista ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência, exceto nas hipóteses expressamente previstas nesta Constituição”. Ou seja, trata-se do fim definitivo do fomento público, pois será possível a qualquer agente privado estrangeiro acionar o Poder Judiciário contra a concessão, por exemplo, de linhas especiais de crédito, ou financiamento de projetos por parte do BNDES, como sendo medidas de “reserva de mercado”.[3] Esse parágrafo, na realidade, é a ressurreição do alvará das manufaturas, de 5 de janeiro de 1785. Nele, a rainha D. Maria I, depois chamada de “a louca”, proibiu toda e qualquer manufatura no Brasil. Caso venha a ser aprovada a sua inclusão ao artigo 173, o Brasil será o único país do mundo a proibir toda e qualquer política industrial em sua Constituição.
Portanto, para além dos privatismos explícitos e contraproducentes, a autodenominada “reforma administrativa” da PEC 32/2020 está inserida no que podemos chamar de austericídio, ou seja, o conjunto de pressupostos ideológicos e diretrizes de política macroeconômica que conformam um arranjo institucional de gestão da área econômica que, além de possuir precária fundamentação teórica e histórica, produz resultados opostos aos desejados, com enormes e negativas repercussões sobre a capacidade de crescimento, geração de empregos e distribuição de renda e riqueza numa sociedade, tal qual a brasileira, já marcada estruturalmente por imensas heterogeneidades, desigualdades e necessidades de várias ordens.
Quando falamos dos tais pressupostos ideológicos do austericídio, queremos nos referir aos seguintes aspectos: i) uma visão intrínseca e extremamente negativa acerca do Estado e do peso e papel que os governos, as políticas públicas e os próprios servidores civis deveriam desempenhar relativamente às esferas do mercado e da sociedade; e ii) uma visão teórica e histórica, extremamente simplista e questionável, acerca de uma suposta independência, superioridade e positividade do mercado, como representante etéreo e idílico da esfera privada, relativamente ao Estado, este visto como a fonte de todos os problemas do mundo econômico e incapaz de bem representar – e agir para – os interesses gerais da sociedade e da esfera pública.
Por sua vez, no caso das tais diretrizes de política econômica, estão bem representadas, no caso brasileiro, pelo tripé de política macroeconômica (vale dizer: regime de metas de inflação, perseguidas em grande medida pela combinação entre taxa de câmbio apreciada e geração de superávits fiscais primários elevados e permanentes), que vem sendo perseguido desde 1999 no país e para o qual importam: i) a manutenção de taxas de juros oficiais acima das respectivas taxas da maior parte dos países que concorrem com o Brasil pelos fluxos internacionais de capitais; e ii) a normatização de regramentos de natureza econômica, particularmente no campo das finanças públicas, tais como a LRF/2000, a EC 95/2016 e as PECs 187 e 188 (de 2019) e 32/2020, fenômeno por meio do qual eles se transformam em regras fiscais rígidas, tanto mais difíceis de cumprir e manejar quanto mais no plano constitucional estiverem.
Tal fenômeno vai então institucionalizando um verdadeiro processo de financeirização da dívida pública federal e privatização da sua gestão pelas autoridades monetária (Banco Central) e fiscal (Secretaria do Tesouro Nacional) do país. Ela promove, de um lado, bloqueios e limites superiores ao gasto fiscal primário de natureza real, justamente o gasto que é responsável pelo custeio de todas as despesas correntes, tanto as intermediárias/administrativas, como as finalísticas destinadas à implementação efetiva das políticas públicas federais em todas as áreas de atuação governamental. De outro lado, regramentos que representam a flexibilização (sem limite superior) e a blindagem (inclusive para fins criminais) do gasto público financeiro, cujos principais beneficiários são as instituições financeiras (bancos, corretoras, seguradoras), fundos de investimento e agentes econômicos de grande porte.
As implicações desse processo são perniciosas para a dinâmica de crescimento econômico, bem como para as condições de reprodução social da população. Posto tratar-se de opção política de política econômica, esse arranjo institucional que está se consolidando no Brasil é passível de contestação teórica e empírica, razão pela qual é importante desnudar as suas implicações e apontar alternativas críveis para redesenhar a referida institucionalidade com vistas à promoção de um desempenho econômico e social mais condizente com o potencial e anseios de crescimento e de inclusão social do país.
Em suma, tais episódios trazem a necessidade de repensar as bases e a estrutura do Estado brasileiro, sem deixar de levar em consideração a questão recolocada na atualidade sobre a prevalência das instituições democráticas sobre o mercado e a independência política do Estado em relação ao poder econômico privado, ou seja, a necessidade de o Estado ser dotado de uma sólida base de poder econômico próprio.
Ou seja, os problemas de fato existentes são maiores e mais complexos que o discurso simplista e falacioso de Bolsonaro/Guedes e cia. sobre inchaço da máquina e explosão dos gastos com pessoal. Porém, não serão enfrentados, primeiro porque esses atores não têm nem capacidade técnica nem sensibilidade social para o tema; segundo porque a sanha persecutória contra servidores é a senha certa para mais uma reforma fadada ao fracasso, tais como já se mostram as reformas trabalhista e previdenciária recém implementadas.
* Gilberto Bercovici, doutor em Direito do Estado e livre-docente em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo, é professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP, Também é professor dos programas de pós-graduação em Direito do IDP e da Uninove.
** José Celso Cardoso Jr. é doutor em Economia, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea e é o atual presidente do Sindicato Nacional dos Servidores do Ipea (Afipea-Sindical), condição na qual escreve este texto.
> Relator adianta alguns pontos que vai acolher na reforma administrativa
> Tudo o que já publicamos sobre reforma administrativa
[1] Sobre este tema, ver José Celso Cardoso Jr. Inovação na administração pública: da Constituição aos modismos gerencialistas da PEC 32 | Congresso em Foco.
[2] Sobre o tema, ver Gilberto Bercovici. A atuação do Estado brasileiro no domínio econômico. livro_republicademocracia.pdf (ipea.gov.br)
[3] Vide o importante alerta de Fausto Oliveira sobre esse tema em https://rib.ind.br/reforma-administrativa-quer-acabar-com-politica-industrial/
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