O resultado da votação da reforma da Previdência pode ser explicado a partir da composição do Congresso, de perfil liberal e fiscalista, do ambiente de crise fiscal do Estado brasileiro, além da dedicação exclusiva do presidente da Câmara e da equipe econômica à aprovação da matéria.
Para explicar a questão de fundo, que é o perfil político do Congresso eleito em 2018, vamos organizar o raciocínio em torno da narrativa em moda, que divide os parlamentares entre representantes da “nova” e da “velha” política.
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A chamada “nova política”, nessa perspectiva, seria representada pelos “novos” parlamentares, de perfil liberal e fiscalista, eleitos com apoio das redes sociais, a partir de um discurso moralista de combate à corrupção e de eficiência do gasto público.
Esses “novos” parlamentares, como regra, estão distribuídos nos partidos do centro à extrema direita do espectro político e, como exceção, em partidos de centro-esquerda, como PDT, PSB e Cidadania.
Para eles, quem garante a justiça é a eficiência da economia, que por sua vez gera emprego e renda, e o esforço individual das pessoas, responsável por criar as condições de empregabilidade, e não as políticas públicas ofertadas pelo Estado. É uma visão meritocrática e individualista, do tipo “a cada um segundo sua capacidade”.
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Por isso, essa parcela do Parlamento apoia as reformas fiscais e liberais, como esta da Previdência, por convicção.
Os chamados representantes da “velha” política, vistos de forma negativa pela narrativa em voga, seriam os “reeleitos”, porém divididos em dois grupos: um formado pelos partidos de esquerda; e outro representado pelo “centrão”.
O primeiro grupo, de esquerda, também pode ser classificado em dois tipos de parlamentares: os gastadores de recursos públicos (perdulários) e os que usam o Estado para sobreviver politicamente.
Para esse grupo, a realização da justiça social depende de condições materiais, de igualdade de oportunidades e de políticas públicas do Estado. Sem essa proteção coletiva, o segmento pobre não teria oportunidade. Trata-se, portanto, de uma visão solidária, do tipo “a cada um segundo sua necessidade”.
Esses grupos, por serem supostamente intervencionistas na economia e defensores do Estado máximo, seriam contrários a qualquer tipo de reforma que reduzisse o gasto público.
O segundo grupo, formado por parlamentares do “centrão”, seria a tropa do “toma-lá-dá-cá”, sem qualquer compromisso programático. São vistos como “sanguessugas”, que condicionam o apoio às reformas à troca de recursos do orçamento, mesmo pertencendo a partidos de visão liberal e fiscalista.
O “centrão”, apresentado como “fisiológico” perante a opinião pública e temendo ser responsabilizado por eventual colapso das contas públicas, utilizou uma estratégia inteligente: exigir mudança no conteúdo da reforma, para “demonstrar sensibilidade social”, mas sem abrir mão da liberação das emendas parlamentares.
A estratégia funcionou. O governo cedeu no conteúdo, abrindo mão do regime de capitalização, do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e da mudança na aposentadoria dos trabalhadores rurais, e ainda teve que liberar as emendas desse grupo.
Vale lembrar que a estratégia funcionou também porque a esquerda bateu fortemente naqueles pontos, considerados perversos para com os mais pobres, com grande repercussão na mídia comercial e nas redes sociais.
Esses parlamentares do “centrão”, por pertencerem a partidos conservadores e de visão liberal fiscal, mesmo sem maiores convicções, não teriam alternativa a não ser apoiar a reforma. Uma estratégia pragmática num momento em que ela [a reforma] passou a ter apoio na opinião pública, além de sempre ter sido defendida por seus aliados no mercado, na mídia e no governo.
As concessões em termos de conteúdo, embora tímidas, ajudaram na formação de maioria em outros partidos, porque deram aos parlamentares refratários o argumento de terem melhorado a reforma. Contudo, foi a liberação das emendas que motivou o “centrão” a votar em favor do texto.
Por essa leitura, com exceção da esquerda, que votaria contra a agenda de reformas com esse viés fiscal, todos os demais votariam a favor, incluindo os “novos”, por convicção, e os do “centrão” por sobrevivência.
Com um Congresso majoritariamente alinhado com a visão liberal fiscal – e num ambiente marcado por forte risco de colapso nas contas públicas, que expõe de modo dramático a necessidade de equilíbrio nas contas públicas – as condições para aprovar agendas com esse escopo seriam facilitadas.
O fato de o orçamento estar congelado, em termos reais, e de a despesa previdenciária ser a maior, após a dos juros das dívidas interna e externa, facilitou a estratégia do governo, do mercado e da mídia de jogar luzes sobre o crescimento da despesa previdenciária, o que passou para a sociedade a percepção da necessidade e urgência da reforma.
Por fim, foi decisiva a determinação do presidente da Câmara e da equipe econômica em concentrar esforços na reforma. O envolvimento do deputado Rodrigo Maia, conhecidamente como um homem pró-mercado, foi de tal ordem que ele assumiu não apenas a articulação com os líderes partidários, mas também participou da negociação de conteúdo. Funcionou, na prática, como líder do governo, embora tenha dito que se tratava de uma agenda do Congresso.
Esse tende a ser o padrão de votação em matérias da agenda liberal e fiscal do governo. Terá a esquerda contra, mas contará com os “novos” sem custo e com o “centrão”, ainda que tenha que pagar pedágio via liberação de emendas parlamentares.
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