Bráulio Santiago Cerqueira *
O pacote do governo encaminhado no dia 5 de novembro ao Senado Federal, o “Plano Mais Brasil”, prevê medidas emergenciais de reequilíbrio fiscal por meio da redução da jornada e dos salários do funcionalismo em até 25%, suspensão de concursos, proibição de progressões funcionais (exceto para militares, Judiciário, membros do Ministério Público, diplomatas e policiais), flexibilização das aplicações mínimas em saúde e educação e esvaziamento do BNDES via subtração de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). No âmbito do planejamento orçamentário, pretende-se extinguir o Plano Plurianual (PPA). Essas medidas são apontadas como necessárias para que, nos próximos 10 anos, R$ 50 bilhões adicionais sejam convertidos em investimentos federais.
Uma segunda parte do pacote trata da questão federativa prevendo mais recursos para Estados e municípios investirem via ampliação de repasses federais, mas proíbe o socorro futuro da União aos entes federados em dificuldades fiscais. Além disso, propõe-se a extinção de 23% dos municípios brasileiros com baixa capacidade arrecadatória sem qualquer consulta à população.
O Plano é ainda complementado pela “Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Fundos Públicos ”, que confere maior flexibilidade para abatimento da dívida pública com recursos de fundos de diversas fontes originalmente criados com outros propósitos.
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Ao todo, as três PECs (186, 187 e 188/2019) alteram mais de 30 páginas da Constituição Federal visando (i) a sustentabilidade do teto de gastos federal, que reduz o gasto público federal em % do PIB, da receita e da população por 20 anos, (ii) a flexibilização do orçamento com a desvinculação de recursos das políticas sociais e (iii) nova rodada de cortes de despesas em Estados e municípios em troca de ampliação de repasses federais.
O roteiro, infelizmente, é conhecido apesar de indigesto para a sociedade. Mais uma vez – como na PEC do teto de gastos, ou na reforma trabalhista ou ainda na reforma previdenciária – as autoridades econômicas evocam a lógica da austeridade e do minimalismo estatal para justificarem cortes indiscriminados de despesas e fragilização de direitos que prejudicam a gestão pública e o atendimento às necessidades da população, além de não representarem estímulos à atividade econômica e ao investimento. Avança-se sem rodeios na constitucionalização da austeridade, ao ponto de se incluir um “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional” no capítulo dos direitos sociais!
Pergunta-se: por que reduzir a jornada de trabalho e as remunerações do funcionalismo federal se os próprios números do governo (slide 6 da apresentação do Ministério da Economia) revelam estabilidade e nenhum descontrole dessas despesas ao longo dos anos? Talvez por causa da conta apresentada segundo a qual “a cada R$ 100 de orçamento, R$ 65 vão para a folha” (slide 8), o que é simplesmente falso: salários e encargos da União em 2018 representaram 22% do total de despesas primárias (Resultado do Tesouro Nacional).
PublicidadeSe as despesas com servidores da União não apresentam descontrole algum, o quantitativo da força de trabalho no governo federal, Estados e municípios está longe do excesso, pelo contrário. No país como um todo, os empregados no serviço público representam 12% da população ocupada contra 21% na média da OCDE. Hoje na União o número de servidores civis em atividade é igual ao de 1991, enquanto nesse período a população cresceu em torno de 30%. Além disso, mais de 10% deste contingente encontra-se em abono permanência, isto é, pode se aposentar a qualquer momento.
Achatar jornada e vencimentos promoverá nova corrida por aposentadorias reduzindo mais do que proporcionalmente o número de horas trabalhadas no serviço público, comprimindo/precarizando a oferta de serviços públicos. Por essa razão, e porque por afrontar o princípio constitucional da irredutibilidade salarial, a proposta do governo flerta com a insegurança jurídica, devendo, se aprovada e implementada, suscitar judicialização.
O governo argumenta que os cortes de salários, assim como de aposentadorias do Regime Geral (reforma da previdência), do abono salarial, na educação e na saúde, abririam espaço fiscal para ampliação do investimento público. Isso, no entanto, não procede, uma vez que o teto de despesas criado em 2016 tende a recolocar permanentemente a necessidade de redução de despesas, exceto as financeiras.
Em 20 anos, o enxugamento da máquina pública e das políticas sociais necessário ao cumprimento da regra chega a 40%, ou seja, os cortes propostos nas remunerações, aposentadorias e nas políticas sociais serão sempre insuficientes para atender a dose exigida de austeridade, que suscitará novos cortes, e não o aumento do investimento, num ciclo vicioso.
Outro problema da apresentação do Ministério da Economia é sustentar que a “despesa total do governo” seja de 49,2% do PIB (slide 5) sem qualquer amparo ou nota metodológica. As Contas Nacionais publicadas pelo IBGE mostram que o consumo do governo nos três níveis da federação é de 20% do PIB; somando-se o investimento público e as transferências às famílias, exceto juros líquidos, chega-se a cerca de 35% do PIB.
Por sua vez, o Fiscal Monitor do FMI estima, para 2018, o total de despesa do governo geral brasileiro em 38,1% do PIB. Pode-se especular que o número inchado da apresentação inclua transferências brutas de juros às famílias (mas o problema alegado pelo Plano Mais Brasil não seria o gasto primário?), que chegam a 9% do PIB brasileiro; ou ainda, incluam despesas contábeis intraorçamentárias, como as contribuições patronais aos Regimes Próprios de Previdência, próximas a 2,5% do PIB. Mas o suposto gigantismo do Estado brasileiro certamente ajuda a justificar o injustificável numa proposta que em tese pretende ampliar o investimento na economia: “menos banco (público de investimento – BNDES), mais desenvolvimento” (slide 18).
O gráfico da “explosão da dívida pública” (slide 7) mostra o forte crescimento do endividamento em % do PIB desde 2015. Ocorre que precisamente a partir de 2015 os gastos primários pararam de crescer ou aumentaram muito pouco. O que explica a deterioração do resultado nominal e o crescimento da dívida foram a queda da atividade e da arrecadação e a alta da taxa de juros até 2016. Cortar indiscriminadamente e de forma permanente a despesa com consumo, transferências sociais e investimento do governo vem contribuindo para que a lenta recuperação em curso da economia se apresente como a pior retomada da história republicana já registrada.
Num aspecto pode-se concordar com o Ministério da Economia: “Se nada for feito o investimento público tenderá a zero” (slide 10). Mas o “Plano Mais Brasil” não resolve o ciclo vicioso da austeridade porque propõe justamente o aumento da dose de um remédio que não funciona. Não só o investimento público “tende a zero”, o país tende ao colapso se nada for feito ou se continuarmos fazendo mais do mesmo.
De acordo com projeções do mercado compiladas pelo Banco Central, somente ao final de 2021 o PIB terá voltado ao patamar de 2014. Desde aquele ano, a taxa de desemprego saltou de 6,5% para 12,0% da força de trabalho. De acordo com o IBGE, além dos atuais 12,5 milhões de desempregados, o Brasil registra 41,3 milhões de empregados sem carteira ou por conta própria sem CNPJ, o que significa metade da força de trabalho desempregada ou na informalidade.
Enquanto isso, desde 2015, a desigualdade, a pobreza e a extrema pobreza voltaram a crescer. É o que evidencia a Síntese de Indicadores Sociais (IBGE): o Índice de Gini subiu 4% entre 2014 e 2018, registrando aumento da desigualdade; a extrema pobreza aumentou de 4,5% da população para 6,5%; e a pobreza subiu do mínimo de 22,8% da população para 25,3%.
Alternativas para o enfrentamento da crise fiscal, econômica e recuperação das políticas públicas existem, como as apresentadas pelos servidores nos documentos Reforma Tributária Solidária (Anfip e Fenafisco) e reforma administrativa do governo federal: contornos, mitos e alternativas (Fonacate). Do lado da receita, que somente se recuperará com a volta do crescimento econômico sustentado, a progressividade pode orientar uma reforma que volte a taxar lucros e dividendos das pessoas físicas, aumente as alíquotas do imposto de renda para os mais ricos, deixe de isentar proprietários de helicópteros do IPVA etc.
Do lado do gasto, num país como o Brasil que emite sua moeda e é credor em dólares, as restrições às despesas não são intrinsecamente financeiras, mas em geral autoimpostas na forma da legislação. Recursos para investir existem, seja financeiros no Tesouro Nacional com mais de R$ 1,0 trilhão em caixa, seja na economia que conta com alta capacidade ociosa e amplo contingente de desempregados e subempregados passíveis de serem mobilizados.
Aumentar o investimento público federal em R$ 50 bilhões, não em 10 anos como prevê o governo, mas já em 2020 para que ao menos se volte ao patamar real de 2014, requer, para além do resgate do planejamento e da coordenação entre governo, estatais e empresas privadas, a revisão de regras fiscais disfuncionais (ou em desuso em todo o mundo, como a regra de ouro) ao momento cíclico da economia, à recuperação do emprego e à geração de renda.
Nada em política é impossível, mas dificilmente o Ministério da Economia – cuja criação redundou na extinção dos Ministérios do Planejamento, do Trabalho e da Indústria, e que possui em sua estrutura uma “Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados” – caminhará na construção desta outra agenda focada na recuperação do emprego, da produção e no combate direto às desigualdades via tributação e reforço da proteção social. O “Plano Mais Brasil” evidencia isso ao usar, mais uma vez, a austeridade e agora uma projeção irreal de crescimento (modestíssimo) do investimento federal como pretexto para nova e gravíssima rodada de fragilização de direitos e mercantilização de políticas sociais.
* Mestre em Economia. Auditor Federal de Finanças e Controle. Secretário Executivo do Unacon Sindical.