Não somos um povo tolerante, muito menos pacífico. É marcante a presença da violência em nossa história. No excelente Brasil: uma biografia, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling sintetizam: “A experiência de violência e dor se repõe, resiste e se dispersa na trajetória do Brasil moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação”.
Somos uma das nações que mais matam no mundo. Segundo o Atlas da Violência de 2018, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Ipea, ultrapassamos o patamar de 62,5 mil assassinatos por ano. São 171 vítimas de homicídio por dia ou sete por hora!
Ostentamos lugar vergonhosamente destacado ainda no ranking global dos casos de violência contra mulher e de crimes contra lésbicas, gays, travestis, transexuais e outras pessoas que desafiam os padrões de gênero dominantes.
2018 mostra a violência adentrando a, ou sendo reintroduzida na, política nacional. Nenhum fato simboliza isso com igual eloquência, até o momento em que escrevo este artigo (toc toc toc), como a facada desferida contra o deputado Jair Bolsonaro em 6 de setembro, na cidade mineira de Juiz de Fora. Já se fazia sentir cheiro de pólvora bem antes. Em 14 de março, houve a execução da vereadora Marielle Franco. No dia 27 daquele mesmo mês, a caravana de Lula foi alvo de tiros no Paraná. Em 28 de abril, dois militantes políticos foram baleados no acampamento mantido pelo PT em Curitiba. Diversas sedes do partido, pelo país afora, foram atacadas nos últimos meses. E se espalham pelas mídias sociais vídeos de agressões covardes de petistas contra bolsonaristas e vice-versa.
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Passamos da fase da intolerância e da radicalização verbal. Para calar os adversários, o negócio agora é agredir, exterminar. OK, todas as correntes políticas se solidarizaram com Bolsonaro. Ao que tudo leva a crer, ele foi vítima do ato isolado e individual do seu algoz. Evidente, no entanto, que o ambiente tenso no qual vivemos há cinco anos contribui para a ação de idiotas em busca de projeção, de criminosos comuns ou de malucos.
Em 2013, as manifestações de junho desembocaram nos black blocs. Em 2014, a campanha de Dilma Rousseff, ameaçada por Marina Silva, se sentiu no direito de sustentar que a ex-companheira de legenda queria tirar a comida da mesa dos pobres para enriquecer banqueiros. Rompia-se ali um limite que petistas e tucanos sempre tinham respeitado entre si. Os fins justificam todos os meios possíveis e imagináveis, e estão liberados os golpes abaixo da linha da cintura.
PublicidadeVem em seguida o PSDB e, sugerindo fraude eleitoral, pede a anulação dos votos da candidata vencedora. Empossada Dilma, tucanos abraçam Eduardo Cunha e suas pautas-bomba, investindo no caos fiscal e na instabilidade política para criar dificuldades ao governo eleito. Com o país no chão, a economia engolida pela recessão e o povo indignado com a corrupção e a incompetência, uma sólida maioria se insurge e pede o impeachment de Dilma. As circunstâncias se assemelham ao processo de deposição de Fernando Collor, em 1992, apoiado pelo PT. Na oposição, o partido apresentou pedidos de impeachment contra todos os presidentes civis dos últimos 33 anos. Por motivos bem mais fúteis e em contexto muito menos grave, o petismo apontava o instrumento como saída democrática para encerrar mandatos presidenciais que julgava danosos. Contra ele próprio, o impeachment ganha outra qualificação – “golpe de Estado”.
“Golpistas” e “petralhas” ganharam munição pesada para agressões mútuas com a ascensão de Bolsonaro como forte candidato a presidente. A violência verbal e o desprezo pelos adversários sempre foram suas características, assim como o pouco apreço pela democracia.
Certas declarações públicas de sua lavra falam por si. “O erro da ditadura foi torturar e não matar”, disse Jair Bolsonaro em julho de 2016. Em maio de 1999, num programa de TV, cometeu outra frase antológica e sombria: “No período da ditadura, deviam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso”. “Sou capitão do Exército, minha especialidade é matar”, afirmou em palestra na cidade de Porto Alegre, em junho de 2017. “Se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”, ameaçou em maio de 2002.
Lamentável assistir a transformação do deputado capitão em vítima da visão, propalada por ele próprio, de que a eliminação física dos oponentes é um recurso válido na luta pelo poder. Atravessamos três décadas, desde o fim do regime militar, sem que nenhuma força política de alguma importância defendesse tal ideia.
Dois outros elementos de instabilidade vieram junto com o pacote Bolsonaro. Seu candidato a vice, o general da reserva Antônio Hamilton Mourão, dia sim, o outro também, discorre sobre as condições em que se justificaria um novo golpe militar. E enquanto o cabeça de chapa convalescia num hospital, saiu a defender uma nova ordem constitucional, esclarecendo que a Carta não precisaria ser feita por parlamentares eleitos. O mau odor da defesa explícita de soluções ditatoriais ampliou-se com o vídeo em que Jair Bolsonaro sugere que, se ele mesmo ganhar a eleição, foi tudo dentro das leis. Se o PT vencer, foi fraude. Péssimo sinal.
Infelizmente, Bolsonaro não é o único a puxar a corda. Lula e PT também a esticaram mais do que o recomendável ao levarem às últimas consequências a tentativa de registrar a candidatura do ex-presidente. Há muito petistas e lulistas sabem que a Justiça não a aceitaria. Têm bons argumentos jurídicos e políticos contra tal decisão. A condenação de Lula à prisão por um apartamento que ele devolveu é tema polêmico e vários criminalistas consideram despropositada a sentença do juiz Sérgio Moro. Moro tem um bonito lugar na história brasileira pela façanha de aplicar a lei de forma inédita contra dezenas de poderosos. Não está, porém, imune a erros. Foi advertido formalmente pelo ministro Teori Zavascki, do STF, por excessos que cometeu, na sanha de laçar Dilma e Lula, no episódio da gravação e da divulgação ilegais de uma conversa entre ambos.
Momento tragicômico vivenciado pelo Judiciário foi o prende-e-solta de Lula, em julho, demonstrando que o partidarismo e a radicalização de posições também infectaram a Justiça. O Ministério Público jogou gasolina no incêndio ao protagonizar prisões espalhafatosas contra políticos em plena campanha eleitoral. Por que não agiram antes, se os fatos em investigação são antigos? Ou aguardaram o fim do período eleitoral para esclarecer e tomar as providências cabíveis? Boa notícia é que os responsáveis foram chamados para dar explicações.
A verdade é que o PT insistiu na defesa de uma candidatura condenada em parte por ressentimento, em parte porque isso lhe rendia dividendos eleitorais. Em outros tempos, Lula, um político de estilo conciliador, seria o primeiro a esfriar os ânimos. Agora, inconformado com a prisão e a exclusão do processo eleitoral, amplifica a raiva contra os “golpistas”. O resultado é que o mercado financeiro, temendo agora o aliado de anteontem, prefere flertar com o bolsonarismo e os seus riscos. No mesmo 6 de setembro da fatídica facada, a bolsa explodiu e o dólar desabou por causa da perspectiva de crescimento de Bolsonaro.
Hora de ser desagradável: nós, jornalistas, também contribuímos para acirrar os ânimos ao vestir a camisa de uma das partes em conflito. Nas grandes redes de TV, por exemplo, o antipetismo é flagrante. Na internet, veículos ditos independentes se tornaram pontas de lança do lulismo. Enquanto isso, os políticos demagogos faturam com a crise e o país afunda na estagnação econômica, no desemprego e na desesperança. Os principais candidatos e líderes nacionais, todos eles, têm forte responsabilidade por esse estado de coisas. Que tenham o bom senso de baixar a bola. Chega de briga, gente! Este país precisa urgentemente se unir em torno de pautas mínimas e voltar a crescer, gerar empregos e enfrentar seus inúmeros e profundos problemas.
Observação: este texto foi produzido originalmente para a Revista da Abrig, que é produzida pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais.