A cada crise — real ou fabricada — o Brasil é tomado pela “dança da chuva” dos xamãs que cobram sacrifícios sangrentos para evocar a presença desse ente que o laureado com o Nobel de Economia Paul Krugman chama de “a fada da confiança”.
A mitológica criatura — encarnação da fé dos investidores que aportarão saltitantes às nossas costas para semear negócios e prosperidade — é exigente.
Quem se horroriza com a descrição dos rituais das civilizações primitivas para assegurar boas colheitas certamente não anda prestando atenção na liturgia cruenta que se celebra para conjurar a fada da confiança.
“Se tirar a Dilma, a crise acaba”, “se congelarmos os investimentos sociais por duas décadas” — leia-se: uma geração — “a economia volta a crescer”, “se exterminarmos os direitos trabalhistas” — degrau fundamental no nosso processo civilizatório — “teremos uma torrente de emprego e renda”. “Quando aplastarmos a Previdência e a seguridade social, pisaremos, enfim, o terreno da abundância”.
A cada passo dessa estranha e sanguinária religião, o país definha. Mas o mantra da “necessidade das reformas” viceja.
É o que estamos vendo agora, sob o impacto do encerramento das atividades da Ford no Brasil — caso emblemático de um processo em curso desde o golpe de 2016: após a derrubada de Dilma Rousseff, o país perde em média 17 fábricas por dia, segundo números da Confederação Nacional da Indústria.
A quebradeira e a desindustrialização não são frutos da “falta de reformas” — que as fizemos desbragadamente, num ritual de sacrifícios humanos digno de uma tribo perdida de filme da Sessão da Tarde. São consequências, isso sim, de “inovações” imprudentes e ao arrepio da institucionalidade, como sabotar um governo legitimamente eleito por não gostar do resultado das urnas — a partir de 2014, ano que encerramos com a menor taxa de desemprego da nossa história, 4,3% — e decretar o impeachment de uma presidenta honesta sem crime de responsabilidade.
De lá para cá, tudo o que tivemos foram sinais caóticos, polarizados e ideologizados, em todas as áreas da economia e das políticas públicas.
O impeachment e as circunstâncias que levaram à eleição do atual presidente somente pioraram, e muito, o ambiente para investidores consistentes (de base, não meramente especulativos).
É possível discutir se nossas leis trabalhistas e previdenciárias eram as mais atualizadas. Mas é inaceitável a falácia de que se constituíssem em motivo para que investidores desconsiderassem o Brasil em favor de países como Argentina, Peru, Nigéria ou Sri Lanka.
Cito esses países porque é com eles que competimos por investimentos industriais, não do mercado financeiro.
Nos aspectos tributários, ambientais, da administração pública e o que mais queiramos “reformar”, tampouco somos tão piores assim em relação a qualquer país diretamente concorrente.
E, no entanto, a Ford escolheu a Argentina e o Uruguai em detrimento do Brasil.
Uma nação verdadeiramente madura e com forças políticas consolidadas (e não infantilmente polarizadas por mentores mal intencionados – de ambos os lados) não vive reivindicando reformas – coisa que fazemos e continuamos a reivindicar a cada “novo” governo, desde Vargas, e, mais acentuadamente, desde a Nova República de Sarney.
O fato é que o Brasil de Bolsonaro — com suas guinadas políticas e pró-radicalismos sociais/comportamentais não oferece qualquer segurança a investidores conservadores/consolidados.
A carnificina metafórica e real (basta ver como o governo se comporta diante da pandemia) assusta a fada da confiança, apesar da litania repetida por seus devotos.
Somente os especuladores e os abutres — aqueles atraídos por sucatas e restos mortais dos grandes players — espicham o olho para o Brasil. “Raspas e restos me interessam”, cantava Cazuza.
A pergunta é se queremos, como nação, ocupar essa categoria.
Uma nação verdadeiramente madura e com forças políticas consolidadas legisla diuturnamente para acompanhar as evoluções tecnológicas, modelos de gestão e novos comportamentos. Não fica reivindicando “reformas” que cortam na carne e no osso do povo a todo instante. Aliás, nenhum investidor estrangeiro as reivindica, em país algum.
No mundo dos adultos, fadas não existem. Está na hora de parar de evocar a caprichosa entidade que tantos sacrifícios já nos custou e buscar construir uma política geral de superação da crise, fortalecimento da economia, geração de emprego e renda e garantia de bem estar social.
Investidor gota de mercados pujantes. Menos fada da confiança e mais mercado interno, por favor!
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