A renúncia fiscal, em nível federal, para produção de soja foi de R$ 57 bilhões em 2022, valor que representa o dobro da desoneração prevista para produtos da cesta básica. Os dados divulgados nesta quinta-feira (19) são da pesquisa realizada pela ACT Promoção da Saúde, pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), pelo Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
O objetivo do estudo, segundo as entidades envolvidas, é “demonstrar como a política tributária, juntamente com outras políticas públicas, privilegiou a produção da soja em detrimento de outras alternativas necessárias à segurança alimentar da população brasileira”. Assim, o mapeamento dos incentivos fiscais ainda alerta para o papel da reforma tributária, uma vez que as instituições apontam relação entre a desoneração e os efeitos climáticos da produção de soja.
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A diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde, Paula Johns, explica que a produção em monocultura, isto é, quando apenas um grão é cultivado em determinada área, afeta a biodiversidade. “A monocultura está ligada diretamente ao desmatamento e ao uso de terras indígenas, isso causa uma monotonia no meio ambiente”, explica. “O aumento da área de produção de soja é exponencial, enquanto as áreas de feijão e arroz são reduzidas”.
Segundo Paula, a predominância da cadeia produtiva de soja ainda impacta no ponto de vista da alimentação saudável. “O Brasil escolheu plantar só commodity. A comida de verdade, saudável, está cada vez mais longe da mesa do brasileiro. O país é considerado o celeiro do mundo, mas a população não se alimenta bem”.
Procuramos a Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja) para discutir os resultados da pesquisa, mas não obtivemos retorno. O texto será atualizado caso haja manifestação da entidade.
Isenção fiscal na soja
PublicidadeA soja é a principal commodity comercializada pelo país. Em 2022 a cadeia produtiva teve valor estimado de R$ 400 bilhões, de acordo com a pesquisa. Consequentemente, em razão da rentabilidade, a soja é o grão que mais cresceu em produção. De acordo com dados da pesquisa, na década de 1990 a área cultivada com soja era de cerca de 10 milhões de hectares; em 2010, eram 23 milhões. A estimativa para 2023 é que a área plantada ultrapasse os 40 milhões de hectares.
Veja o estudo sobre incentivos fiscais à soja
O estudo revela que, dentro da quantia bilionária da soja, o governo deixou de arrecadar, em 2022, R$ 56,81 bilhões em impostos. A análise da incidência tributária federal demonstra que não há cobrança dos impostos PIS/Pasep e Cofins na produção de soja. A alíquota padrão dos impostos é de 9,25%. Constata-se ainda que a desoneração do IPI, cuja alíquota de referência é 3%, também é de 100% da alíquota. Desde 2020, o governo zerou o imposto de importação para soja e milho.
Detalhadamente, o valor estimado de desoneração em cada uma das etapas da cadeia produtiva do grão foi o seguinte: na produção (insumos fertilizantes, agrotóxicos e semente), a estimativa da desoneração é de R$ 18,59 bilhões; na indústria (farelo, óleo alimentar e biodiesel), R$ 9,99 bilhões; a estimativa de desoneração nas exportações de soja e seus derivados é de R$ 28,23 bilhões; no crédito presumido para a indústria, R$ 2,78 bilhões.
Além da desoneração em tributos federais, a pesquisa demonstra que, em Mato Grosso, maior produtor de soja no país, houve desoneração de quase R$ 8 bilhões no ICMS. “É seguro supor que outros estados produtores têm níveis de desoneração semelhantes, o que permite estimar que a desoneração dos estados pode chegar perto de R$ 25 bilhões, uma vez que Mato Grosso responde por 1/3 da produção nacional”, destaca o relatório.
Os organizadores do estudo questionam o investimento e a isenção fiscal no setor, que é o mais lucrativo do país. “Será que um setor tão desenvolvido necessita de tanto apoio do Estado para manter suas posições nos mercados? Não chegou a hora do segmento devolver parte dos investimentos que a sociedade brasileira vem fazendo nesta cadeia produtiva?”
Nesse sentido, o relatório expõe disparidades nos investimentos entre diferentes grãos. Dados do Banco Central apontam que, em 2022, 52% do crédito rural para financiar lavouras foram destinados aos produtores de soja, repassados por meio de 187 mil contratos. Ou seja, de um total de R$ 133,2 bilhões emprestados para custear lavouras no país, R$ 69,5 bilhões foram para o financiamento da soja. Se o milho for adicionado à conta, a porcentagem para as duas culturas representa 72% do crédito rural para custeio de lavouras no país em 2022.
Entretanto, segundo o Censo Agropecuário de 2017, o investimento não corresponde a uma distribuição homogênea de investimentos para os produtores. No Brasil, foi estimado que existem cinco milhões de estabelecimentos agropecuários, à época do senso. Mas apenas 256 mil deles são produtores de soja, 5% do total. Os produtores de feijão, por outro lado, representam 936 mil, e os produtores de mandioca, quase um milhão.
Diante desse cenário, a diretora-executiva da ACT, Paula Johns, afirma que a pesquisa contribui para a promoção do debate. “[A pesquisa] ajuda a problematizar e desmistificar essa coisa que o agronegócio é a salvação para o Brasil, até porque não existe só um modelo disso, um é autossustentável e o outro, exploratório. Pode ser ainda um elemento de justiça social nas assimetrias de poder que afetam toda a cadeia produtiva”.
Em relação à reforma tributária, o estudo pontua: “Em um contexto em que está sendo debatida a reforma tributária dos impostos que incidem sobre o consumo de bens e serviços no Brasil, é importante refletir sobre a importância dos instrumentos tributários para o desenvolvimento econômico e social do país, seus possíveis impactos sobre a segurança alimentar e nutricional da população e a sua contribuição para a crise climática”.
Para as organizações envolvidas no levantamento, o Estado brasileiro já cumpriu seu papel em apoiar a estruturação do setor da soja e, com a reforma tributária, tem a oportunidade de repensar prioridades, considerando o enfrentamento à fome com alimentos saudáveis e produzidos de modo sustentável, bem como a necessidade de diversos outros investimentos possíveis a partir desses recursos públicos atualmente destinados ao setor produtivo da soja.