José Luis Oreiro* e Rogério Carvalho**
A crise sanitária afetou uma economia que sequer havia recuperado os níveis de produção anteriores à recessão 2015/2016. Entre 2017 e 2019, o PIB per capita se manteve praticamente estagnado, com elevada capacidade ociosa da economia. Neste contexto, estímulos fiscais, mediante ampliação de despesas com forte efeito multiplicador, seriam a saída mais eficaz para a retomada do crescimento.
No entanto, foi adotado, desde a gestão Temer, teto de gastos que congela as despesas primárias da União por até vinte anos. Na prática, a regra determina redução das despesas como proporção do PIB até 2036. Com a crise, o setor privado se retrai, impactando a atividade econômica e a arrecadação, ao mesmo tempo em que o investimento público é reduzido em função da política de austeridade, criando um círculo vicioso. Entre 2014 e 2021, os investimentos na proposta orçamentária federal passaram de 1,2% para 0,3% do PIB.
Adicionando-se a esta conjuntura a crise sanitária e seus efeitos sobre a oferta e a demanda, o Brasil terá uma queda do PIB estimada em 5% para 2020. Em setembro, cerca de 40 milhões de pessoas estavam desempregas ou gostariam de trabalhar, mas não procuraram trabalho. A redução do PIB não será maior em função do auxílio emergencial, aprovado pelo Congresso Nacional. A redução/retirada do auxílio sem recuperação da renda do trabalho terá grande impacto sobre o desemprego e a pobreza.
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Mesmo assim, o governo acena com o reforço da austeridade, que retirará 8% do PIB em despesas de 2020 para 2021.
A justificativa dos representantes do governo é o patamar da dívida pública. Ora, a ampliação da dívida é um fenômeno mundial, produto da combinação do aumento de gastos para enfrentamento da pandemia e queda da arrecadação em função da crise. Por exemplo, os países da Zona do Euro, em média, fecharão 2020 com dívida bruta superior a 100% do PIB, segundo projeções do FMI. Ainda assim, estão adotando estímulos fiscais e monetários vultosos com vistas à recuperação da economia.
Há alternativas viáveis ao teto de gastos, como a PEC 36/2020, apresentada por mais de 30 senadores, que autoriza, para 2021 e 2022, ampliação de gastos selecionados. A partir de 2023, aproximando o Brasil de regras modernas adotadas em diversos países, a PEC estabelece metas de gastos diferenciadas por área, combinando sustentabilidade fiscal e financiamento de despesas com elevados efeitos multiplicadores e redistributivos.
No caso brasileiro, a dívida é fundamentalmente denominada em moeda local, de forma que não há risco de default. Além disso, a combinação de juros baixos e valorização dos ativos do setor público (especialmente as reservas) suaviza a trajetória da dívida líquida. Em relação à alegação do mainstream da economia que a dívida bruta do governo geral pode alcançar 100% do PIB, vale lembrar que não há um limite a partir do qual a dívida se torna insustentável.
Além disso, mais de 20% da dívida bruta do governo geral se refere às operações compromissadas, títulos do Tesouro que a autoridade monetária utiliza para regular a liquidez da economia, adequando-a à taxa básica de juro. É fundamental aprovar o Projeto de Lei nº 3.877/2020, segundo o qual o Banco Central poderá acolher depósitos voluntários como alternativa às compromissadas.
O PL alinha o Brasil às práticas internacionais, além de corrigir grave distorção na contabilidade da dívida. Ainda que o passivo do setor público não se altere, a redução potencial da dívida bruta do governo geral, segregando política monetária e fiscal, enfraquece o argumento da austeridade, que defende a manutenção do teto de gasto em função do tamanho da dívida.
Além do equívoco do teto de gasto, o governo pretende votar o projeto de autonomia do Banco Central no Senado. É mais uma agenda que atentará contra a retomada da economia. Nos países desenvolvidos, após a crise de 2008, intensificou-se o papel da política monetária tanto por meio da redução das taxas de juros como por políticas não convencionais, como o quantitative easing – QE. Este consiste na criação de moeda por meio da mudança da composição e tamanho do balanço dos bancos centrais, com a compra de títulos públicos e privados de diversas maturidades. O resultado é a ampliação das condições de crédito e liquidez da economia.
Como diversos países em desenvolvimento já se encontram com taxas de juros muito baixas, as políticas de QE serão essenciais para a recuperação “pós-covid”. Neste cenário, a autonomia do Banco Central, perseguindo apenas uma meta de inflação e não a redução do desemprego, dificultará a coordenação entre estímulos fiscais e monetários para a retomada do crescimento.
Um banco central imune à soberania popular não é autônomo, pois corre forte risco de captura pelo mercado. No momento atual, mesmo em meio a pressões por aumento dos prêmios de risco nos títulos públicos, já se pode observar que o Banco Central não vem utilizando os instrumentos conferidos pela Emenda Constitucional nº 106/2020. Ela autoriza a autoridade monetária, durante o estado de calamidade, a adquirir títulos públicos no mercado secundário com vistas a achatar a curva de juros.
Isto é, o aumento das taxas nos títulos longos não resulta de uma relação entre déficit fiscal e juros, mas da inação da autoridade monetária. Com a autonomia, este quadro se agravará, reduzindo a possibilidade de combinação de políticas fiscais e monetárias que busquem o crescimento da economia.
A saída para a crise requer maior aderência das instituições públicas às necessidades da sociedade, e não o insulamento antidemocrático das políticas fiscal (teto) e monetária (autonomia), sujeitando-as às expectativas de mercado. Assim como fez durante a pandemia, é urgente que o Congresso Nacional assuma uma agenda que atenda às expectativas populares, criando as condições para a recuperação econômica, com geração de emprego e renda e financiamento a serviços públicos essenciais. Para tanto, não faltam condições financeiras. Basta vontade política.
*José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.
**Rogério Carvalho é senador da República (PT-SE) e líder do partido no Senado.
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