Marcus Vinicius de Azevedo Braga e Sandro Zachariades Sabença *
O Homem-Aranha, alter ego de Peter Parker, é um dos heróis do mundo dos quadrinhos e cinematográfico mais populares. Criado por Stan Lee e Steve Ditko, com a sua primeira aparição em 1962, se fez famoso, em especial, pela humanização do personagem, com uma intrincada constelação de amigos e parentes de Peter, que se entremeia com os vilões e dilemas enfrentados pelo herói.
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Um dos parentes de Peter Parker, Ben Parker (Tio Ben), que representa a figura paterna, nas origens do herói, em uma conversa com o sobrinho, adolescente as portas da idade adulta, percebendo-o angustiado, na busca de aconselhá-lo, diz umas das frases mais icônicas desse universo: “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”.
A sabedoria de Ben Parker é o mote que inspira o presente artigo, que discute o estatuto de autonomia diferenciada conferido a certas instituições públicas, necessário para o desempenho técnico de suas atribuições, mas que acarreta alguns riscos, à exemplo do abuso de poder e do insulamento. Nossa convicção é a de que a solução dos dilemas da autonomia reside na máxima de que “grandes poderes trazem grande responsividade” (accountability) (1), uma nova interpretação da clássica frase do Tio Ben.
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1-Para que serve a tal autonomia? E, por que todos desejam tê-la?
Sonho de praticamente todo servidor público é ver a instituição de que faz parte dotada de autonomia. Ser livre para atuar em seu ofício, para escolher o modo, o tempo e os meios para consecução de suas atividades. Em verdade, não é um sentimento exclusivamente altruísta, cujo objetivo visa a melhor entrega de serviços à sociedade; essa tal autonomia traz consigo prestígio, holofotes e capacidade de influenciar relevantes decisões da administração pública, atraindo para os membros das entidades autônomas melhor remuneração, benefícios orçamentários e vantagens funcionais. Neste sentido, o clamor de instituições por autonomia deve ser sempre sopesado com o contexto, de maneira a saber, de fato, a amplitude necessária dessa autonomia, o quantum de liberdade para agir lhe deve ser conferida e quais instrumentos serão necessários para garanti-la, e prevenir seus abusos.
Disfunções à parte, fato é que algumas instituições necessitam de especial proteção destinada a assegurar que suas decisões sejam puramente técnicas e baseadas em sua expertise, mitigando riscos de influências de interesses privados ou da conjuntura política momentânea, cuja lógica tende a ser de curto prazo. A autonomia de determinadas instituições é atributo necessário ao moderno desenho democrático, que exige um complexo sistema de freios e contrapesos (2), com a alocação de poderes entre os diversos atores do Estado, limitando os poderes dos atores eleitos, garantindo a continuidade das políticas públicas frente à alternância de poder (3), visando a entrega de melhores resultados ao cidadão.
Assim se observa nos EUA, com suas agencies, e no Reino Unido, com seus Quangos, e nas melhores práticas da moderna administração pública no mundo ocidental(4) ; é baseado nessa lógica, que no Brasil temos o modelo de agências reguladoras, que assim como os tribunais de contas, são instituições dotadas de autonomia decisória específica. Importa salientar que o senso comum costuma supervalorizar a autonomia de órgãos de controle e torcer o nariz para a autonomia de entidades voltadas para a gestão e para execução de políticas públicas, a despeito do fato de existirem instituições desta natureza que necessitam ser protegidas pelo véu da autonomia para entregar melhores resultados.
Para garantir a atuação técnica (autônoma) de instituições de Estado, é que são atribuídos mandato fixo para seus dirigentes, prerrogativas para os seus membros, reserva decisória para determinados cargos (e carreiras) e ausência de subordinação técnico-decisória em relação aos chefes de Poder, mecanismos que trazem autonomia, mas que não podem significar independência plena, nem imunidade para prestar contas, sob pena de se abrir uma porta para o arbítrio, para a tirania, pois o remédio(autonomia) pode gerar efeitos colaterais, à exemplo da dificuldade de funcionar em redes de governança e do insulamento burocrático; questões que colocam em risco a eficiência dos entes autônomos e que serão a seguir enfrentados.
2- Entre a autonomia e a interdependência: um primeiro dilema
O primeiro dilema se dá na instituição de entes autônomos em espaço destinado à governança em rede, modelo típico da moderna administração pública, cujo funcionamento depende de relações matriciais, onde não é possível, em muitas das vezes, enxergar relações hierárquicas entre entes públicos, onde opera a cooperação. Essa profusão de autonomia, ambicionada pelos órgãos e pelos seus servidores deve gerar, em uma visão global e estratégica, lacunas e superposições entre atores, dado que os órgãos não agem sozinhos, e sim em redes temáticas de interdependência, que em contraposição, demandam incentivos para promover a cooperação e a redução de conflitos.
Para viabilizar a governança em rede em que estão presentes agentes autônomos, há de se pensar no estabelecimento de espaços dialógicos e de pactuação entre esses atores, de forma a garantir a coordenação entre esses, assegurando assento à sociedade civil e aos atores políticos, de maneira à compatibilizar a existência de uma burocracia estável, técnica e autônoma com agentes políticos que reflitam a temporalidade dos anseios da população, sob pena de acarretar na formação de uma tecnocracia e consequentemente, o descolamento da burocracia da realidade cotidiana.
Outra questão relevante da governança em rede de instituições autônomas diz respeito ao seu reconhecimento desses entes como poderes neutrais (5), de caráter moderador, funcionando como contrapeso às forças democraticamente eleitas. Para o seu perfeito funcionamento, entes autônomos devem se enxergar como elos da mesma corrente; caso contrário, como afirma Schedler (6), se os elementos dessa rede forem autônomos e fragmentados, sem a obrigação de prestar contas, teremos cada um cuidando de sua parcela de poder, como ilhas de integridade, e não como sistemas, o que reflete negativamente nos resultados das políticas públicas, severamente impactados pela luta entre seus atores.
A autonomia dos entes públicos pressiona cotidianamente a governança dessas redes, que vivem um equilíbrio dinâmico de um poder que precisa ser dividido, de modo a evitar abusos, pois todo poder tem a natural tendência de ser usurpador (7). Necessária se faz uma eficaz coordenação para que o órgão autônomo não se torne ensimesmado de maneira a viabilizar que essas redes implementem políticas públicas que gerem resultados para a sociedade.
Essas redes necessitam, portanto, de formas de coordenação específica, com incentivos e controles cruzados, destinados a preservar sua autonomia, sem abrir mão da efetividade de sua ação. Para exemplificar, pode-se citar os órgãos relacionados a promoção da probidade, que atuam em redes que envolvem poderes e entes federativos diferentes, com tarefas complementares, todos funcionando com algum grau de autonomia, como o Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério Público (MP), a Polícia Federal(PF) e a Controladoria-Geral da União (CGU).
A ação descoordenada desses atores pode gerar ineficiências; é o caso, por exemplo, dos acordos de leniência, onde CGU, MPF e TCU travaram disputa pela sua titularidade, acarretando ineficiência no modelo administrativo de combate à corrupção brasileiro (8). Até as instituições de controle, às quais a atribuição de autonomia é praticamente inconteste, reconhecidamente promotoras de accountability horizontal, como sustenta O’Donnell (9), também necessitam ser responsivas, pois todos tem restrições, não cabendo heróis ou vilões na democracia (10), mas sim competências, limites e responsabilidades.
3- Entre o insulamento e a restrição: o dilema da autonomia na dose correta
Voltamos ao Tio Ben, nosso insigne personagem. As instituições precisam de poder, querem poder, mas grandes poderes trazem grandes responsabilidades, em especial que as previnam de dois riscos centrais: o de insulamento, descolado da realidade, e o segundo, de se tornar um órgão tutelado, que não consiga executar as suas tarefas pela ausência da autonomia desejável.
Primeiro risco, o insulamento ocorre quando essa autonomia se converte em autonomização, e quando o órgão se descola da realidade, agindo de forma ensimesmada, sem alinhamento com o arranjo da política pública, gerando baixa efetividade. Nesse contexto, a atuação do órgão não mais se comunica com a finalidade pública, que legitimou a sua criação.
Além do insulamento, um segundo risco merece atenção, que é o outro extremo, o de ser um órgão tutelado, manietado, cujo estatuto de autonomia a ele conferido não foi capaz de assegurar uma atuação técnica isenta. Esse risco, se materializado, também causa prejuízos, nos tênues limites entre a interferência e a supervisão de atores, representando dois riscos que revelam faces diferentes de um mesmo problema: a administração da dose errada de autonomia entre as instituições estatais.
Pouca autonomia, tutela; muita autonomia, insulamento. Para atingir a eficiência desejada nas instituições dotadas de algum grau de autonomia, a accountabitity (responsabilização) é o elemento decisivo; é como Marcus Melo desenha a questão, como “uma série de trade offs entre delegação, responsabilização e eficiência”(11), o que indica a responsabilização como “a variável decisiva: alta delegação sem responsabilização gera ineficiência. Baixa delegação sem responsabilização implica ineficiência” (12).
A ideia de accountability, de raiz liberal, em sentido amplo, se traduz na existência de condições para os cidadãos participarem das atividades do Estado, para definir e avaliar sua atuação, responsabilizando ou premiando os agentes públicos responsáveis (13). Nesse sentido, são mecanismos de accountability a existência de instrumentos e instituições de controle, bem como transparência e responsabilização, que propiciam a ideia de vigilância permanente de todos sobre todos, sendo que essa tensão apresentada sobre mais ou menos autonomia está inserida nessa luta, na qual o controle de todos por todos gera atritos, pactuados por normas escritas ou não, que são submetidas a tensão frente a casos concretos e as pressões do momento.
A ausência, ou insuficiência, de mecanismos accountability, é porta aberta para a ocorrência de atos de corrupção, para decisões auto interessadas (self-dealing) e para a promoção de medidas que não atendam ao interesse público (14). Nesse sentido, atores com autonomia reforçada, para não serem instituições incontroláveis, precisam ter sua atuação delimitada por instrumentos de governança que propiciem a existência de mecanismos de compartilhamento de poder (revisão de decisões, repartição de autoridade e responsabilidades entre seus membros), de um processo decisório claramente estruturado, de submissão permanente de seus atos à auditorias e a adequada transparência de seus atos (15).
Remetendo a metáfora inicial desse texto, relembra-se que a emblemática frase do Tio Ben para o seu sobrinho, Peter Parker, que acabara de receber dons fruto da picada de uma aranha radioativa, foi o que definiu que a sua conduta não seria egoísta, disfuncional, de uso de seus poderes em benefício próprio, convertendo-se ele em um super-herói, defensor da coletividade, Homem-Aranha, o amigo da vizinhança. A máxima do Tio Ben vale também para as instituições dotadas de autonomia no contexto republicano, para que não se desalinhem do interesse público, ensimesmadas, lembrando sempre em sua jornada que “grandes poderes trazem grande responsividade”.
* Marcus Vinicius de Azevedo Braga é auditor federal de Finanças e Controle e doutor em Políticas Públicas (UFRJ). Sandro Zachariades Sabença é auditor federal de Finanças e Controle, mestre em Direito da Regulação (FGV) e graduado em Direito e Contabilidade.
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(1) Neste artigo, o termo “accountability” será utilizado de maneira ampla, incorporando suas mais distintas acepções, como controle, responsabilização e prestação de contas. Neste sentido, accountability e responsividade serão utilizadas como expressões sinônimas.
(2)HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. Os artigos federalistas: artigos 47- 51. Revista de Informação Legislativa, v.48, n.192, p.125-136, out./dez. 2011
(3)ACKERMAN, Bruce. The New Separation of Powers. Harvard Law Review, v.113, n.3, p.___, 2000.
(4)CARDOSO, Jose Lucas. Autoridades Administrativas Independentes e Constituição. Coimbra Editora, 2000.
(5)O reconhecimento da existência de uma função neutral de instituições de Estado é associado à obra de Carl Schmitt (1888-1985).
(6) SCHEDLER, Andreas. Conceptualizing accountability. In: Schedler, A.; Diamond, L.; Plattner, M. The Self-Restraining State: Power and accountability in New Democracies. Lynne Rienner Publisher, 1999. P. 13-27.
(7)HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. Os artigos federalistas: artigos 47- 51. Revista de Informação Legislativa, v.48, n.192, p.125-136, out./dez. 2011
(8)Conforme matéria jornalística em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2017/06/06/interna_politica,600381/sem-c oordenacao-conjunta-acordos-de-leniencia-estao-sob-risco-de-anul.shtml
(9)O’DONNELL, Guillermo. Accountability Horizontal e Novas Poliarquias. Lua Nova, São Paulo nº 44, 1998.
(10) BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo. VISCARDI, Pedro Ribeiro. Accountability e burocracia: o dilema dos capitães. 2016. Congresso em foco. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/accountability-e-burocracia-o-dilema-dos-capitaes/. Acesso em: 15 maio 2020.
(11) MELO, Marcus. A política da ação regulatória: responsabilização, credibilidade e delegação. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.16, n.46, p.56-68, 2001.
(12)Idem.
(13)PO, Marcos Vinicius; ABRUCIO, Fernando Luiz. Desenho e funcionamento dos mecanismos de controle e accountability das agências reguladoras brasileiras: semelhanças e diferenças. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro , v. 40, n. 4, p. 679-698, Aug. 2006 .Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122006000400009&lng=en&nrm=iso>. access on 25 May 2020. https://doi.org/10.1590/S0034-76122006000400009.
(14)ESTY, Daniel C. Good Governance at the Supernational Scale: Globalizing Adminsitrative Law. Yale lj, v. 115, p. 1490, 2005.
(15) Idem.
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