Fábio Bispo, especial de Buenos Aires *
Luzia Rainz, 34, acordou cedo no último 4 de julho, agasalhou a filha, uma bebê de seis meses, e preparou o mate. Na TV, o noticiário destacava a quinta morte de pessoas em situação de rua por conta do frio. Ela mal pode digerir a notícia, a vizinhança da Villa 31 — principal favela de Buenos Aires — já marchava em direção ao centro da capital argentina. Não almoçou, mas levou papinha na bolsa para a pequena. À tarde, após horas de gritos de protesto, o Legislativo da capital argentina aprovou a venda de 12 áreas públicas nas localidades de La Boca, Colegiales e Retiro — onde está a Villa 31 com milhares de moradias erguidas de forma precária em área ocupada.
“Se colocam essas terras onde estão nossas casas a venda não teremos dinheiro para comprá-las. Eu não tenho para onde ir”, contou a mulher. O projeto 671/2019 promete arrecadar 168 milhões de dólares com a venda de áreas públicas para investir em obras de infraestrutura, como a reurbanização da própria Villa 13, mas a proposta não passou confiança aos moradores.
Leia também
Um dia após a aprovação do projeto, o diário Clarín revelou que a maior parte do dinheiro com as vendas de áreas públicas será usado, na verdade, com outro tipo de obras de infraestrutura e servirá para pagar o financiamento do paseo del bajo, obra rodoviária elencada pela gestão do presidente Mauricio Macri como grande obra de seu governo. “Ao governo, nós não interessamos, não servimos para nada, nem sequer para trabalhar, pois não há trabalho”, desabafou Magdalena Aguirre , também moradora da Villa 31.
O argentino que vai às urnas em primeiro turno neste domingo, dia 27 de outubro, está mais pobre, tem medo do desemprego e de alguma forma é afetado pelos impactos da inflação, que este ano deve fechar em 55%. O país enfrenta sua pior crise econômica e social em uma década, processo que se agravou nos últimos anos. A fome voltou à pauta do dia e o número de sem tetos cresceu 35% em três anos. A produção do país está em queda e o PIB, que em 2018 registrou uma retração de 2,5%, deve voltar a cair em 2019.
As projeções de sete institutos de pesquisa, divulgadas na sexta passada (18) apontam aquilo que as ruas já vêm demonstrando há meses: as chances de o presidente Maurício Macri, da coalizão Juntos pela Mudança, reverter a derrota das primárias são praticamente nulas, e a vitória se encaminha para o candidato da chapa peronista, Alberto Fernández, da Frente de Todos, que tem a ex-presidente Cristina Kirchner como candidata a vice. A maior diferença chega a 22 pontos nas pesquisas.
Depois de 12 anos comandando o país —primeiro com Nestor, de 2003 a 2006, depois com Cristina, de 2007 a 2015, em dois mandatos— os Kirchner podem voltar ao poder, desta vez como vice de Alberto Fernandez, peronista que se define como “liberal de esquerda”, ou “liberal progressista”, nas suas próprias palavras.
Um bom termômetro para medir a satisfação dos argentinos são os protestos de rua. Nos últimos anos eles cresceram quase que na mesma proporção que a piora dos indicadores sociais e econômicos. Os argentinos protestam quando o dólar sobe, quando a produção de leite cai e quando mais vagas de empregos são fechadas. Só no ano passado, os moradores da Villa 21-24, em Barracas, saíram às ruas pelo menos 200 vezes. “Queremos um bairro melhor, e para isso precisamos de trabalho. Primeiro, o que mais buscamos é visibilizar os trabalhadores da economia informal. Aqui somos 30% de gente que está desempregada”, afirma Lucas Bogado, que desde 2016 integra a Junta Vecinal da comunidade, que é a mais populosa de baixa renda da capital argentina, com mais de 80 mil habitantes.
Em 9 de julho deste ano, feriado da Independência, um ato que reuniu milhares ao redor do Obelisco acabou com repreensão policial. No local, centrais sindicais organizaram uma ação para distribuir comida, cobertores e colchões para moradores de rua. Formaram-se longas filas. E quando o movimento tentou sair em marcha foi impedido pela polícia, que usou bombas de gás para dispersar a manifestação.
Dados do Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidad Catolica Argentina (UCA), mostram que 62,6% dos lares no país vizinho sofrem com ao menos uma carência social. Das moradias que apresentam algum tipo de deficiência, 31,9% apresentaram déficits educacionais e 30,2% tem dificuldades para acessar serviços básicos. Dificuldades para acesso à alimentação e saúde são registradas em 22,8% da famílias.
A fome, ou inseguridad alimentaria, como é classificado o indicador, atinge 7,9% da população, chegando a 6% dos lares argentinos. Tal dado também pode ser medido pela concentração dos chamados “comedores”, espécie de cozinhas comunitárias instaladas, principalmente, nas regiões mais carentes. Só em Buenos Aires são 455 comedores. E, em todo o país, dados do Ministério da Saúde e Desenvolvimento Social da Argentina revelam que cerca 223 mil pessoas frequentam esses locais.
Uma pesquisa realizada com estudantes do programa de educação para adultos da escola de ensino médio do Pólo Educativo de Barracas mostrou que a maioria dos estudantes adultos afirma que faz suas principais refeições na própria instituição de ensino e 31,7% relataram que nos últimos 30 dias não tinham nada para comer em casa pelo menos uma vez. Desses, 53% disseram que a falta de comida em casa se repetiu mais de dez vezes em um mês.
“Isso demonstra a demanda que as pessoas do bairro têm por qualificação educacional. Elas sabem que esse é o único caminho para conseguirem melhores postos no mercado de trabalho ou até mesmo para conseguirem vencer o desemprego”, conta Leonor Gallardo, coordenadora do projeto.
Já os números do Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec), órgão oficial do governo argentino, mostraram no início de outubro que 3,8 milhões de argentinos entraram para o grupo de pessoas abaixo da linha da pobreza. Agora, são mais de 15 milhões de argentinos, 35,4% da população, nessa faixa.
Na outra ponta, o mesmo Indec aponta o mais alto patamar de desemprego em 13 anos, que alcança 10,6% da população. Em 2015, quando Macri venceu as eleições, a taxa de desocupação era de 7,1%. O número de trabalhadores não registrados também cresceu e é de 35% da população.
“Isso nos faz pensar não só na pobreza em si, que é um dado estatístico, mas também nos processos de empobrecimento, que é mais complexo. Após as pesquisas, o que podemos concluir é que todos os extratos sociais da argentina têm empobrecido, independente de que alguns tenham caída abaixo da linha de pobreza e outros tenham tido que ajustar o consumo, o que já revela esse processo de empobrecimento”, explica Santiago Poy, sociólogo e pesquisador do Observatório da Dívida Social da UCA.
Poy diz que é complexo medir a pobreza, “são muitos os fatores analisados”. Ele fala que é uma reação em cadeia que sofre influência de indicadores econômicos e sociais, como taxa de informalidade e inflação, por exemplo. “Em 2016 a taxa de informalidade era de 34%, em 2018 subiu para 40%”. Esses trabalhadores são os que mais sofrem para conseguir reposições salariais na mesma velocidade que o aumento do custo de vida.
“No último ano nós vimos um efeito muito significativo da perda de ingressos monetários nas famílias, aliado a isso temos um crescimento da inflação que refletiu em perda real de salário, entre 10% e 20% em 2018, valor bastante significativo”, emenda o pesquisador.
O número de sem tetos é outro indicador alarmante. Desde 2016, segundo informações do governo portenho, o número de pessoas vivendo nas ruas aumentou 35%. Mas a situação ainda é pior, aponta um censo popular organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Excluídos (MTE). Enquanto o governo contabiliza 1.146 pessoas, o movimento fala em 7.251 pessoas nas ruas.
Argentino pensa e sonha em dólar
Em agosto, as primárias impuseram a maior derrota de Macri até aqui, o resultado das primárias foi um balde de água fria na campanha de reeleição —Alberto Fernández, que tem a ex-presidente Cristina Kirchner como candidata a vice, obteve 47,1% do votos, abrindo uma vantagem de quase 15 pontos percentuais para Macri, que tem 32,48% da preferência. O resultado, segundo especialistas, praticamente define a eleição deste domingo.
Um dos piores reflexos da disputa eleitoral é sem dúvida o movimento dos mercados e a consequente variação do dólar. Após o resultado das primárias, a moeda americana disparou e bateu 62 pesos, uma alta de 36,7%. No ano, a alta do dólar acumulada é de 60%.
E como o argentino pensa e sonha em dólar, qualquer variação é sinônimo de remarcação de preços nos supermercados e entra e sai nas casas de câmbio. Para se ter ideia, eletrodomésticos são vendidos com base em preços internacionais e imóveis só são negociados em dólar.
A recessão já dura desde abril de 2018, quando a Fazenda suavizou os índices de inflação e reduziu a taxa de juros. O mercado reagiu com desconfiança e o PIB registrou queda de 2,5%. As projeções do FMI para 2019 apontam uma retração ainda maior, na casa de -2,9%.
O jornalista econômico Alejandro Rebossio, autor de Estoy Verde (AGUILAR, 2013) , livro que fala dessa relação do argentino com a moeda americana, lembra que em períodos democráticos nunca um presidente argentino se reelegeu diante de duas quedas seguidas do PIB. Mas pondera ao perceber algumas comparações do atual momento com a crise de 2001, a pior da história do país.
“A crise de 2001 foi maior no campo econômico e social. Houve um calote ao FMI e o PIB acumulou uma baixa de 25% entre 1999 e 2002. É importante lembrar que até 2001 a economia tinha paridade de 1 peso para 1 dólar, o que também não existe hoje, e em 2002, o desemprego passou dos 20%, o dobro registrado agora”, explicou.
Mesmo assim, afirma Rebossio, não há certezas de que o país esteja mais próximo da saída da crise ou se ainda está ladeira abaixo. “Os economistas não sabem de fato onde essa crise pode acabar. Há quem acredite que no próximo ano a Argentina consiga se recuperar, mas muitos ainda falam em um terceiro ano de queda do PIB”, emenda.
Ao anunciar um pacote de medidas para minimizar o atual momento econômico, um dia após as primárias, Macri mais uma vez deu sinais de que há um delay entre a realidade argentina e os atos de governo. Entre os anúncios, na tentativa de salvar a reeleição, o presidente congelou o preço da gasolina, aumentou o salário mínimo e prometeu bônus adicional aos trabalhadores.
As promessas de 2015, como “fome zero” e “chuva de investimentos”, ficaram para trás. No último domingo, durante debate com os presidenciáveis na Faculdade de Direito de Buenos Aires, Macri admitiu dificuldades na geração de emprego.
“É verdade que no último ano tivemos um problema de emprego e também há gente preocupada em perder seu trabalho. Passando as eleições, a Argentina vai sair da incerteza política e vai voltar a crescer. Criamos mais de um milhão de postos de trabalho, mas muitos informais, o desafio segue sendo criar emprego formal e de qualidade”, disse o presidente emendando que para desenvolver o país é preciso “conectá-lo fazendo várias obras de infraestrutura”.
Sobre a pobreza, o Macri limitou-se a dizer que diferente dos governos anteriores não interferiu na divulgação de dados oficiais, como acusa de ter feito os governos kirchneristas.
Inflação é a mais alta de 1991
Por um litro de leite, os argentinos chegam a pagar algo em torno de R$ 4,10. O preço atual, no entanto, é inferior ao de abril deste ano, quando eventos climáticos afetaram o abastecimento nos supermercados e uma embalagem tetrapack chegou a custar mais de 60 pesos, algo em torno de R$ 6. Em um ano, segundo dados de setembro do Instituto de Promoção da Carne de Vaca Argentina (IPCVA), o preço da carne vermelha teve uma alta de 43,6%.
A variação nos preços ao consumidor tem se tornado outro grande dilema do país vizinho. A inflação, que em 2015 era de 26,9%, assumiu uma curva ascendente e fechou 2018 em 47%, o mais alto nível desde 1991, quando o país saiu de um período marcado pela hiperinflação. Em 2019, segundo informa pesquisa de expectativas de mercado medidas pelo Banco Central Argentino aponta um cenário ainda pior para 2019, com possibilidade de o ano fechar com uma inflação de 55%.
A redução no padrão de consumo das famílias já é uma realidade. “Eu vejo que a crise é algo que vem se construindo há alguns anos, mas eu não sentia tanto isso. Agora, o que ganho dá somente para comer e pagar aluguel. Comprar roupas novas já não é uma possibilidade. Na casa de meus pais ocorre o mesmo, eles tiveram que baixar a qualidade dos produtos, desde o leite até os produtos de limpeza”, emenda a fotógrafa Florência Jacobs, 25.
Para o diretor nacional de Estatísticas e Condição de Vida do Indec, Guilhermo Luiz Manzano, os índices de pobreza atuais estão mais relacionados à desvalorização dos salários reais diante do custo da cesta básica do que ao fechamento de vagas. “O incremento da pobreza por perda de postos de trabalho, agora, é menor que em outros momentos. Hoje, a crise está mais relacionada a elevação do custo de vida”, afirmou.
O Indec é o órgão oficial do governo e sofreu forte intervenção governamental em diferentes momentos no governo de Cristina Kirchner, período cujos dados não são tidos como “confiáveis”. O governo atual questiona as séries históricas sob alegação que dados do último trimestre de 2015 e o primeiro trimestre de 2016 teriam sido manipulados.
“A verdade é que nesses últimos três anos o trabalhador está passando mal. Nós estamos vendo mais empobrecimento. Hoje nós estamos aqui para pedir que não morram mais pessoas nas ruas, ,como aconteceu. Hoje nós temos que discutir a falta de um prato de comida para os trabalhadores da economia popular ou para aqueles que não têm teto”, fala Jaquelina Flores, dirigente do (MTE).
FMI solta a mão de Macri
Quando assumiu em 2015, Macri colocou em prática aquilo que até então era apenas o discurso o levou a vitória. Austeridade era a palavra do momento. Promoveu cortes de subsídios e perseguiu com unhas e dentes a redução do déficit público. O tarifaço em serviços como o gás elevou custos dos consumidores em mais de 800%. A inflação subiu e a crise cambial fez o dólar disparar. E o presidente demorou para perceber o quão significativo era o reflexos dos indicadores sociais.
Passou o primeiro ano no vermelho. Melhorou em 2017, mas a equipe econômica e o Banco Central não conseguiram segurar sozinhos o rojão. A inflação não caiu e os indicadores sociais pioraram.
Passados três anos, o discurso se manteve, o que mudou foram os prazos. Na abertura dos trabalhos do Congresso argentino este ano, disse que os efeitos de suas políticas seriam percebidos mesmo a partir de 2020. “Será feito o ato de Justiça social mais importante dos últimos 70 anos”, disse em março.
Desde então, Macri já correu quatro vezes ao FMI. Assinou o maior empréstimo da história, de US$ 57 bilhões, e com a promessa de que receberia 80% desse dinheiro até dezembro deste ano. A conta ficaria para depois, seria paga a partir de 2021 e mais US$ 11 bi de juros. Mas após o resultado das primárias, que indica uma provável derrota de Macri para Alberto Fernandez, o diretor-gerente interino do FMI, David Lipton, afirmou que o acordo ficará suspenso por um tempo.
Mas nem os dólares do FMI, tampouco o moribundo acordo de livre comércio com os europeus, resolveram o problema. A espiral negativa que draga a Argentina e a reeleição de Maurício Macri coloca o país diante de uma situação nada animadora, seja o governo que vier.
O país foi classificado pela agência de risco Standard & Poor como uma das cinco economias mais frágeis do mundo. Tirando indicadores da Venezuela, a Argentina apresenta a mais alta inflação e é o país com a pior desvalorização da moeda local. O desemprego argentino está acima da média para a América Latina, que é de 8%, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas está abaixo do Brasil, que tem uma taxa de 11,8%.
> Se Cristina Kirchner voltar, Argentina virará uma Venezuela, diz Bolsonaro
* Fábio Bispo viajou a Buenos Aires pelo programa Jornalismo Sem Fronteiras, que tem como foco a formação profissional de correspondentes, coordenado pela jornalista Claudia Rosssi.