Se algo existe no Brasil que precisa de mudanças profundas imediatas, esse algo se chama agências reguladoras, que foram criadas a partir de 1995 por emenda constitucional, tais como a Anac (aviação), a Anatel (telefonia), a ANS (saúde), a Aneel (energia) e tantas outras, que vão custar, em 2019, R$ 8,09 bilhões para o bolso do povo brasileiro. Elas existem para disciplinar e fiscalizar os serviços públicos e privados e, precipuamente, defender os direitos dos consumidores.
Estão valendo a pena? Tais agências estão desempenhando um bom papel? O povo enganado por companhias de aviação está contente com o serviço “fiscalizatório e regulamentador” delas? E o povo que usa telefonia, energia, que pensa sobre elas?
Quando levamos em conta a quantidade de ações judiciais promovidas (quase 5 milhões na área do consumidor, desde 2015), é evidente que mais esse serviço público está falido ou caótico, causando dissabores e aborrecimentos na população. As agências reguladoras, na verdade, fazem parte do chamado “colapso Brasil”.
Seus problemas: indicação política dos presidentes e diretores, influência do mercado nas indicações (Mercado + Política = dominação financeirizada e mercadolítica), ausência de concurso público para o preenchimento dos seus cargos, defesa mais dos interesses do mercado que dos consumidores, partidarização das indicações, debilidade das entidades dos consumidores, uso da coisa pública para fins privados, capitalismo de amizades (laços) etc.
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O ministro Barroso fala em “deformação das agências em virtude do loteamento político”. Agências reguladoras politizadas não geram segurança jurídica que é fundamental seja para a observância dos contratos, seja para o alavancamento dos investimentos e do crescimento econômico. Não contribuem, ademais, para o rigoroso controle fiscal que necessitamos, nem para o aprimoramento da democracia, que não combina com serviços públicos de péssima qualidade.
As agências reguladoras padecem dos vícios presentes nas três lógicas organizacionais, que se sobrepõem no Brasil: a colonialista (patriarcalismo e cordialismo, laços de amizade, confusão entre o público e o privado), a do capitalismo selvagem (comercial e industrial, com seus privilégios, satisfação dos interesses das elites) e a do capitalismo financeiro anticivilizatório (concentração brutal de renda e de riqueza, aumento abissal da desigualdade, trabalho precarizado generalizado, desprezo aos consumidores, terras e águas mortas, desindustrialização massiva, mineração devastadora, corrupção, violência etc.).
PublicidadeA fortuna ou a desgraça de uma sociedade, de uma civilização ou mesmo da humanidade, por assim dizer, reside na natureza humana. A síntese precisa de John Adams (segundo presidente dos Estados Unidos – 1797-1801) vale a pena ser transcrita:
“É inútil afirmar que a democracia [o Estado, o Mercado, o Capitalismo] é menos vã, menos orgulhosa, menos egoísta, menos ambiciosa ou menos avara que a aristocracia ou a monarquia. Não é verdade, de fato, e não há um único ponto na história que nos faça acreditar nisso. Essas paixões [vanidade, orgulho, egoísmo, ambição desmedida, avareza] são as mesmas em todos os homens [e mulheres], sob todas as formas de governo [de esquerda, de centro ou de direita], e, quando infrenes [sem freios, sem limites, sem fronteiras, sem controles, sem autocontenção, sem ética], produzem os mesmos efeitos de fraude, violência e crueldade” (citado por Micklethwait e Wooldridge, A quarta revolução).
O humano é um animal político (Aristóteles) que, se não for bem domesticado (Nietzsche), para satisfação dos seus interesses, é capaz de destruir tudo em seu entorno (os outros humanos, a natureza, os animais, o uso racional das tecnologias e por aí vai).
A criação das agências reguladoras segue uma lógica: a lógica da contenção, dos limites, do bom serviço, dos governos eficientes e dos mercados competitivos. Também lhe é inerente a lógica da descentralização do poder. Isso implica a transferência de autoridade para os tecnocratas que as dirigem (micropoderes), cujas nomeações deveriam passar pelo concurso público (meritocracia), exigindo-se absoluta transparência dos seus atos.
Tecnocracia sem concurso de mérito e de conhecimento, em regra, descamba em politicagem, regida pelo império do mercado financista (o verdadeiro Quarto Poder), que “compra” o poder político (Executivo e Legislativo) assim como, muitas vezes, o próprio Judiciário (por meio de favores e presentes caros ou pela corrupção ou pelo financiamento de campanhas eleitorais).
Temos que fazer mudanças profundas nas leis que regulamentam as agências reguladoras, evitando-se sua politização e mercadorização nefastas, que prejudicam todas as classes excluídas do clube das elites do poder (eis os excluídos do clube: os grandes proprietários sem acesso ao poder político, a classe média – que consegue proporcionar bom estudo para os filhos sem que eles necessitem trabalhar -, os trabalhadores e empreendedores precarizados e os abandonados irrelevantes).
O século 21, depois das quatro revoluções do Estado (nacional-Hobbes, liberal-Stuart Mill, bem-estar-Beatrice Webb e neoliberal-financeira-Milton Friedman), clama pela Quinta Revolução, para a defesa do Estado regido pela ética e pela cultura da civilização. Seu papel é cuidar da educação, saúde, previdência sob teto, Justiça, segurança e fiscalização do Mercado competitivo. Por tudo isso é que temos que lutar.
Quer saber mais?
Já tratamos (em outro artigo) dos vícios e das virtudes referentes às relações entre Estado e mercado. É comum ouvirmos as pessoas reclamando, e com razão, do baixo padrão dos serviços públicos prestados pelo Estado, sobretudo nas áreas da saúde, educação, Justiça, segurança e mobilidade urbana. Por outro lado, os serviços privados não deixam por menos, sendo comum, também, queixas direcionadas às empresas de telefonia, planos de saúde, companhias aéreas e bancos, por exemplo.
Desconhecidas de boa parte da população, as agências reguladoras, autarquias especiais com autonomia, são regidas pela Lei 9784/99 e geralmente estão associadas aos tradicionais esquemas políticos de diferentes partidos no poder.
O toma-lá-dá-cá vai desde nomeações por troca de apoio no Congresso, ou então, a interferência feroz do mercado em assuntos de governo, o conhecido lobby. É justamente esse entrosamento perigoso que nos dá a sensação de que esses órgãos não cumprem seu objetivo final de fiscalizar e aplicar sanções ao descumprimento de normas que prejudiquem toda a sociedade.
É bom termos em mente que, mesmo em economias liberais mais adiantadas, como a estadunidense ou a inglesa, o estado cumpre papel importante nos marcos regulatórios, criando, por exemplo, a partir da autonomia de suas agências, políticas públicas que perpassam mandatos eletivos. No Brasil, ótimos exemplos são a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Inmetro (transformado em agência reguladora no ano passado pelo PL 6621/16), que prestam serviços de boa qualidade à sociedade no tocante à saúde em geral e aos produtos consumidos.
Em linhas gerais, o surgimento e o desenvolvimento da regulação possui duas vertentes. Na primeira, ela seria uma resposta da sociedade ainda no século 19 aos problemas do livre mercado e seus efeitos nefastos, como os monopólios, a concorrência desleal, a exclusão de serviços essenciais, a venda de produtos inseguros, as ofertas enganosas, as fraudes, os cartéis etc.
Karl Polanyi apontou nesse sentido que o laissez-faire (capitalismo regido só pelo livre mercado) frequentemente resultava em péssimas condições de trabalho e no esgarçamento do tecido social. Essa mesma lógica permeou a regulação que ganhou vulto nos Estados Unidos com o New Deal, uma resposta à crise econômica de 1929, e na década de 1960, como resultado de mobilizações por valores sociais como a igualdade (ver, A grande transformação, 1944).
A segunda, de viés economicista, estabelecida pela Escola de Chicago, interpreta a regulação como a articulação de grupos econômicos com o governo e com políticos, no intuito de restringirem a competição e se apropriarem de rendas da sociedade, prejudicando-as.
Por trás desse argumento está o ideário do Estado mínimo, que no Brasil é apoiado por alguns segmentos da sociedade. Um paradoxo, visto que o mais comum no país é nossa elite econômica e financeira viver dos favores do Estado, particularmente da lógica perversa do sistema da dívida pública.
A regulação envolve políticas públicas que impõem restrições à ação desordenada dos atores privados (em alguns casos públicos) e regras visando a direcionar o mercado para uma competição justa baseada no aprimoramento da qualidade de bens e serviços. Há duas formas de regulação: a econômica e a social.
A primeira previne os monopólios, define tarifas e taxas de retorno de serviços públicos em mãos privadas, propõe regras de entrada e saída de determinados mercados (por exemplo, o de seguros, o financeiro etc.). A regulação social, por sua vez, pode tratar de questões como assimetrias de informação e externalidade negativas, em áreas como meio ambiente, proteção do consumidor, segurança do trabalho, dentre outras.
No Brasil a criação dessas agências derivou da concessão de serviços públicos a partir de 1996, com a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e a ANP (Agência Nacional do Petróleo). Em outros casos, o controle de mercado que era realizado por secretarias e departamentos passou para as agências, como Anvisa, ANS (Saúde Complementar), ANTT (transportes terrestres), Antaq (transportes aquaviários) e, recentemente a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
Outras instituições mantiveram seus formatos antigos, a exemplo do Banco Central, que zela pelos bancos e pelo sistema financeiro ou o Inmetro (Instituto Nacional de metrologia e qualidade industrial), que cuida dentre outras coisas, da segurança dos produtos.
Se ainda estamos longe do ideal em termos da qualidade de serviços e do controle estatal nos diversos setores da economia, não é por culpa das agências. Do ponto de vista teórico, elas surgem no intuito de conter a busca desenfreada de lucro por parte das empresas prestadoras de serviços e para democratizar um pouco mais as decisões setoriais do executivo.
A experiência histórica em diferentes países mostrou que é necessário haver um equilíbrio mais justo nas relações entre Estado, mercado e sociedade, afim de evitar excessos, que prejudicam sempre o lado mais fraco. É ilusão, portanto, achar que a “mão invisível do mercado” irá resolver os nossos problemas e se autorregular. As agências devem agir no intuito de tomar partido, deixando o jogo mais equilibrado para os consumidores. Devem também criar no mercado a estabilidade necessária para garantir investimentos de longo prazo em áreas de infraestrutura.
O principal problema, portanto, não é a sua existência. Ruim com elas, pior sem elas! A grande questão está na forma de governança. Nossa experiência aponta que, se houve algum avanço, ainda é comum a falta de transparência na prestação de contas dos governos à sociedade e isso se reflete nas agências.
No Brasil, os negócios privados e os interesses de grupos minoritários e familiares, ainda prevalecem sobre a coisa pública. A ausência de relatórios e informações sobre as atividades desenvolvidas (como multas e fiscalizações) e sobre os resultados e impactos dessas ações são exemplos da falta de preocupação democrática de nossas elites do poder.
Mas, ao invés de reclamar apenas, a sociedade civil deveria pressionar as agências para uma maior efetivação de suas funções. Caminho complicado, visto que para existir uma sociedade civil atuante e independente de partidos e governos é necessário haver recursos e capacidade técnica. No futuro, essas organizações civis poderiam tomar parte no processo regulatório e, por que não, demandar a regulação, onde necessária. No Brasil esse processo que está longe de acontecer deveria ser incentivado por todos os governos como forma de fortalecer nossa democracia.