Nunca me pesou tanto escrever sobre um episódio importante. Mas, não deixarei de dar uma palavra final sobre o Caso Battisti.
Ele havia integrado o inexpressivo grupelho Proletários Armados para o Comunismo, um dentre centenas que pegaram em armas na Itália dos anos 70 depois da traição histórica do PCI ter levado ao desespero os esquerdistas sinceros daquele país.
Jogando suas dignas tradições no lixo, os comunistas italianos primeiramente combateram (até em batalhas de rua) a contestação jovem de 1968, depois se mancomunaram com a putrefata Democracia Cristã para chegarem ao poder (algo semelhante à aliança entre PT e PMDB no presente século).
Em vídeo, o desembarque de Cesare Battisti em Roma após quase 40 anos de fuga
Uma atordoada juventude de esquerda, já não tendo partido da política convencional que lhe inspirasse quaisquer esperanças, embarcou na aventura da luta armada – e se deu mal, principalmente a partir do verdadeiro tiro pela culatra que foi o assassinato de Aldo Moro por parte das Brigadas Vermelhas.
Leia também
O inimigo, com o PCI à frente, soube capitalizar ao máximo tal episódio chocante, insuflando uma desmedida histeria anti-ultras que tornou a Itália, durante alguns anos, um híbrido de Estado policial: mantinha algumas instituições funcionando normalmente, mas sua polícia e sua Justiça se desequilibraram por completo, atingindo paroxismos de tendenciosidade em seus julgamentos de cartas marcadas.
PublicidadeEscala no Brasil foi evitada para garantir prisão perpétua de Battisti, diz ministro italiano
Nesse clima de caça às bruxas se deu a condenação de Battisti à prisão perpétua, baseada unicamente nas delações premiadas de antigos companheiros que, sabendo-o a salvo na França, atiraram em suas costas uma responsabilidade que ele nunca teve, por quatro episódios que terminaram em morte.
Embora nem a mim ele haja admitido isso, fiquei com a certeza de que a transferência de culpas não se deu à revelia de Battisti. Pelos valores da esquerda revolucionária daquele tempo (e falo como quem a ela pertenceu convictamente), nenhum militante digno, ainda mais supondo-se inatingível pelas forças repressivas, deixaria de dar sua contribuição para a libertação de companheiros. Prestar solidariedade era um dever de honra para nós.
Como zelador de edifícios e outras profissões subalternas que exerceu na França, sob a proteção do premiê François Mitterrand (o qual, sabendo das injustiças e arbitrariedades que a Itália perpetrava contra seus ultras, ofereceu-lhes abrigo desde que levassem existências comuns, abstendo-se de atividades políticas), Battisti estava praticamente esquecido.
Bastou obter sucesso literário como escritor de novelas policiais para, alçado à condição de famoso, tornar-se um alvo preferencial das fanfarronices neofascistas, um troféu que Silvio Berlusconi moveu céus e terras para poder exibir triunfalmente. Contudo, por uma questão de timing, acabou sendo agora privado dos holofotes que buscou de forma tão obsessiva (bem feito!).
Assim, por eventos obscuros de quatro décadas atrás, um cidadão pacato e produtivo de 64 anos, com um filho brasileiro para sustentar, está sendo remetido ao inferno das prisões italianas, das quais dificilmente sairá com vida (até porque várias vezes já manifestou sua intenção de suicidar-se, de preferência a suportar tal calvário).
O pretexto para sua destruição são três assassinatos que não cometeu e um quarto que até mesmo a Justiça italiana deixou de atribuir-lhe ao ficar provado que ele não poderia estar fisicamente presente no chamado local do crime, mas que a indústria cultural continua lhe imputando para fins de manipulação desavergonhada.
O verdadeiro motivo é bem outro: provar que o sistema pode esmagar a bel-prazer seus dissidentes, desestimulando qualquer resistência à desumanidade, neste momento em que a barbárie avança em passo acelerado, minando as bases de nossa civilização.
De resto, deixando de lado os personagens que fizeram exatamente o que deles se esperava e não merecem sequer ser citados num artigo para pessoas de família (seus nomes equivalem a palavrões!), mencionarei apenas dois que fizeram aquilo de que poucos os imaginavam capazes.
Um é Luiz Fux, ministro do STF que tomou uma decisão coerente com os preceitos legais em outubro de 2017, quando ninguém imaginava que a extrema direita fosse chegar ao poder no Brasil, e assumiu posição diametralmente oposta quando uma nova correlação de forças políticas se configurou na eleição presidencial.
Outra é o presidente da Bolívia Evo Morales, que incidiu na mesma ignomínia de um antecessor repulsivo: franqueou o território do seu país para forças estrangeiras caçarem Battisti, assim como René Barrientos o fizera em 1967 com Che Guevara.
Não me estenderei sobre Morales porque teria dificuldade para evitar os vômitos. Darei a palavra a Roberto Jefferson, que conhece bem como funciona a cabeça dessas figuras da politicalha sórdida.
Depois de constatar que Morales havia lavado as mãos com relação a Battisti, Jefferson concluiu: “O índio é pragmático. Não demora e vai abandonar Lula e o PT também”.
Alguém duvida?