A revista Tpm lançou em novembro de 2014 um chamado importante: “Precisamos falar sobre o aborto”.
Entre essas mais de 1 milhão que fazem aborto, estava Jandira Magdalena dos Santos (razão de um artigo “Quem matou Jandira?” que já publiquei neste espaço), que morreu em agosto de 2014, portanto há pouco mais de um ano, ao fazer um aborto numa clínica clandestina.
O aborto ilegal sempre é feito em clínicas clandestinas, portanto, nunca se sabe se quem lá atende é um médico ou um falso médico. No caso de Jandira, era um falso médico e não era cubano.
No Brasil, só é permitido o aborto em três situações: gravidez resultante de estupros, ou seja, a mulher foi violentada, às vezes até por mais de um homem (caso de Queimadas, na Paraíba); risco de vida à mãe; e feto anencéfalo. Esta uma situação não está estabelecida em lei, mas por uma decisão do Supremo Tribunal Federal.
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É um pouco antiga mas precisa ser lembrada a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2010 pela antropóloga Debora Diniz e pelo sociólogo Marcelo Medeiros. O estudo revelou que mais de uma em cada cinco mulheres brasileiras, entre 18 e 39 anos de idade, já tinha feito aborto pelo menos uma vez na vida.
PublicidadeDados da Organização Mundial da Saúde mostram que o número de mulheres no Brasil que fazem aborto passa de um milhão por ano. Estes números deixam claro que a proibição não impede essas mulheres de fazer aborto. O aborto, para elas, é o meio para resolver um problema. E essa solução é buscada em um serviço compatível com a sua renda. Em outras palavras: procuram serviços de qualidade questionável, expondo-se a riscos de perder a vida ou ter complicações de saúde.
Há uma concepção na sociedade, inclusive entre muitos profissionais de saúde, que a maioria das mulheres que buscam o aborto seriam irresponsáveis, promíscuas, que mantêm vida sexual com mais de um parceiro, enfim, mulheres que não merecem o respeito.
A pesquisa PNA mostrou outro retrato: são mulheres religiosas, que usam anticonceptivos, casadas ou com companheiro fixo e têm filhos. São nossas vizinhas, parentes, filhas, amigas e mães as que estão fazendo aborto na clandestinidade e correndo o risco de morrer.
Fazem e sofrem na solidão da dor psicológica, mental, espiritual e, às vezes, física.
Faz um ano que morreram Jandira Magdalena dos Santos Cruz e Elisângela Barbosa. Vai fazer um ano que a revista Tpm fez o convite para “falarmos de aborto”.
São duas mortes, assim como tantas outras, cometidas pelo hipocrisia da sociedade. Infelizmente, o convite da revista não foi respondido.
Na época, ambas as mortes foram tratadas com sensacionalismo e serviram para discursos inflamados de fundamentalistas contra o aborto. Nada mais se avançou no tema e mulheres continuam morrendo por fazer o aborto.
Quando uma mulher vai em busca do aborto e morre, são duas vidas que perecem. Portanto, o tema aborto é presente e é premente: duas vidas podem ser salvas.
Ao afirmar que vidas são ceifadas pela hipocrisia da sociedade, o faço com a convicção de que muitas das pessoas que fazem o discurso contra o aborto têm casos na própria família, quando não na própria esposa.
Não estou sozinho ao afirmar que é hipocrisia. A jornalista e escritora Eliane Brum, codiretora do documentário “Uma história Severina”, afirma que a questão do aborto no Brasil revela a face criminosa da nossa hipocrisia. Aliás, hipocrisia hoje presente em tantos outros atos, discursos e ações.
O triste é que a hipocrisia reina e não abre nenhum espaço sério e responsável, como pediu e pede a revista Tpm, para debater o tema aborto no Congresso Nacional. Enquanto isso, famílias continuam enterrando suas filhas, esposas e mães.