Lúcio Lambranho e Edson Sardinha
A retomada de uma discussão encerrada há mais de três anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pode retardar o julgamento de processos por trabalho escravo e determinar o arquivamento de uma série de ações por prescrição do crime. Os ministros discutem, pela segunda vez, se a competência para julgar esses casos é da Justiça Federal ou da Justiça Estadual.
Em novembro de 2006, o STF definiu que os casos deveriam ser julgados pela Justiça Federal. No julgamento de 2006 sobre um caso de trabalho escravo no Pará, os ministros Cezar Peluso, Marco Aurélio Mello e Carlos Velloso, já aposentado, foram vencidos pelos demais integrantes do STF.
Em fevereiro deste ano, um caso registrado no Mato Grosso fez a corte voltar a discutir o tema. Relator do recurso extraordinário, Peluso, próximo presidente do STF, votou novamente pela competência da Justiça Estadual. Já o ministro Dias Toffoli votou pela manutenção da jurisprudência na esfera federal. O julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa. Não há previsão de data para o caso ser novamente analisado no plenário do Supremo.
“É muito complicado termos tanto tempo de apuração ou nem mesmo um inquérito policial, pois o processo administrativo que foi feito por fiscais do Ministério do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho deveria servir como base para o início das investigações”, avalia o advogado João Ibaixe Júnior, criminalista da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP.
Ibaixe considera “descabida” a falta de encaminhamento das ações do Grupo Móvel pelo Ministério Público Federal. No entendimento dele, os casos deveriam ser julgados pela Justiça Federal. “Se há um interesse da União no combate ao crime de trabalho escravo para cumprir acordos internacionais, e a apuração é feita por agentes da União, não há por que discutir a competência que só atrasa ainda mais o andamento dos processos”, diz.
Desconhecimento e ignorância
“Tem muito juiz e procurador que ainda não acreditam que exista trabalho escravo. Eles ainda precisam ser sensibilizados para entender esse tipo de crime”, diz Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, especializada no combate ao trabalho escravo. “Há muito desconhecimento e ignorância em casos de trabalho escravo, pessoas que acham que o problema está vinculado à cor da pele ou à existência de correntes. É difícil comprovar casos de má-fé, mas que ela existe, ah, ela existe”, completa o coordenador da Repórter Brasil.
“É preciso saber o que está acontecendo, se é falta de empenho do MPF ou falta de provas. Porque o Ministério Público do Trabalho tem conseguido bastante êxito em suas ações a partir da fiscalização do grupo móvel. Ouvi reclamações das duas partes e hoje o grupo móvel até filma suas ações para garantir aos procuradores mais provas nos julgamentos”, avalia Luiz Machado, coordenador de Combate ao Trabalho Escravo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.
Machado cita o Mato Grosso, um dos expoentes do agronegócio brasileiro, como exemplo de estado que demonstra interesse em virar o jogo contra o trabalho escravo. Com a estrutura local montada a partir de 2006, as autoridades mato-grossenses podem se dar ao luxo hoje de dispensar as ações do Grupo Móvel, segundo o representante da OIT. “Em Mato Grosso houve uma aproximação do MPF, do MPT e dos órgãos estaduais de fiscalização, pois o número de casos lá continua elevado. Em outros estados, isso ainda não aconteceu, e infelizmente ainda existe essa discrepância”, diz o representante da OIT no Brasil.
Para Luiz Machado, o ideal seria ter a participação dos procuradores da República nas ações do Grupo Móvel, assim como já ocorre com os procuradores do Trabalho em todo o país. “Acho que esse levantamento do Congresso em Foco mostra a importância da presença do MPF, embora a alegação seja de que existe um número reduzido de procuradores federais”, afirma Machado.
Outra questão que preocupa a OIT com relação aos processos criminais diz respeito ao descumprimento da legislação que tipifica o crime de trabalho escravo. Machado ressalta que, apesar de haver mais de 40 condenações em todo país em primeira instância, nenhum réu cumpre pena de reclusão pelo crime, como prevê a Lei 10.803, sancionada em dezembro de 2003 pelo presidente Lula, primeiro ano da divulgação da “lista suja” de empregados autuados por trabalho escravo.
Apesar da nova redação ao artigo 149 do Código Penal, que caracteriza o crime de redução à condição análoga à de escravo, muito juízes ainda precisam ser conscientizados sobre o tema. “É necessária a aplicação do artigo que prevê pena de dois a oito anos de reclusão e que não está sendo aplicada. Por isso, esse trabalho junto aos juízes continua sendo feito e ainda é necessário”, completa Machado.
Além de prever a reclusão, multa e pena correspondente aos casos de violência contra o trabalhador, a nova lei estabelece de forma clara as características do crime: “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.”