Dia desses, contemplando a movimentação dos navios de carga que chegam e saem do porto de Vitória, fiquei a pensar no quão importante é o transporte de mercadorias. Está ali, nas costas daquelas imensas embarcações, o coração da talvez mais importante atividade humana: o comércio.
A tamanha importância deveria corresponder igual preocupação com a segurança – daí minha surpresa ao descobrir que, a cada 4,6 dias, um daqueles imponentes navios afunda em algum lugar deste planeta. Mais de um por semana!
Parece incrível, mas para que o comércio mundial funcione razoavelmente bem, quase três marinheiros perdem a vida a cada dia só em razão desses naufrágios – em 2012, por exemplo, foram 981 mortes.
Mas, pensando bem, mais incrível ainda é que ninguém fala nisso. Se, para fins de comparação, a cada cinco dias caísse um avião de passageiros carregando crianças para férias na Disney, matando umas quinze delas, acredito que a segurança dos aviões seria alvo de inquéritos, estudos, denúncias, protestos, ocupações e tudo o mais.
Como, no entanto, estamos a falar de pobres marinheiros se afogando por conta de navios claramente inadequados para os rigores dos oceanos, tudo acaba resumido a estatísticas, e não se fala mais nisso.
Leia também
Há também o caso dos mineiros. São eles os responsáveis finais pela extração de minérios os mais preciosos e indispensáveis ao bem-estar de toda a população. Imaginem, por um instante que seja, um mundo com escassez de carvão, de cobre etc.
PublicidadeNão seria demais imaginar que tão importante atividade fosse cercada dos devidos cuidados, em respeito aos profissionais que passam suas vidas percorrendo buracos cada vez mais profundos.
Mas que nada! A cada ano morrem soterrados, pelo mundo afora, nada menos que doze mil mineiros. Isso dá uns 32 deles a cada dia. E, também aqui, ninguém fala sobre isso. Um escândalo dessas proporções acaba virando estatística, e fica tudo por isso mesmo.
Fico a pensar em uma pintura de Georges Rochegrosse magistralmente descrita pelo escritor português Albino Forjaz de Sampaio: “É um quadro que representa a vida. No primeiro plano muitas criaturas erguem o braço para chegar mais alto. Homens de casaca tão corretos como se fossem para um baile. Homens condecorados e homens banais, velhos e moços, misturam-se e empurram-se, disputando-se numa agonia pavorosa, num combate sem nome. Aquele monte é a ambição de subir na vida. Atrás, pela riba acima, numa escalada vertiginosa, aparece uma maré cheia de cabeças ululantes, estranguladas pela ambição, correndo, empurrando-se, pisando os que ficam. Todos daquela multidão ávida querem ser os primeiros. O lugar é disputado a soco, a murro, a dente. O caminho que leva ao triunfo é uma cena medonha que mais parece a fuga duma derrota”.
E prossegue o escritor lusitano: “Não há trégua, não há descanso. Cada um vigia sempre o seu vizinho, espreita se ele cai, e tripudia, espreita se ele sobe, e inveja-o. Trava-se um combate em que o mais cruel, o mais forte, o mais canalha, é que triunfa. Nada de piedade nem de compaixão. Se não esmagares, serás esmagado. Não há tempo de olhar, nem de pensar sequer. Avançar seja como for, custe o que custar”.
Não há necessidade de se ir a museu algum para olhar este quadro de Rochegrosse – basta pensar nos marinheiros, mineiros e tantos outros profissionais que, devido ao mundo como ele é, perdem a vida tentando ganhá-la.