Há várias publicações de A carta do Descobrimento: ao Rei D. Manuel, de Pero Vaz de Caminha. Aqui uso como referência a publicada pela Nova Fronteira (Saraiva de Bolso), em 2013. Os trechos que transcrevei (em itálico) da Carta não são sequenciais e os escolhi por entendê-los importantes para o momento. Também, aleatoriamente, junto-os por temas:
1. Costumes
“E dali tivemos a visão de homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito…
…pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas.
Nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas; e estão em relação a isso com tanta inocência como tem mostrar o rosto.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.”
2. “Intercâmbio”
“Ali não pôde haver conversa nem entendimento que se aproveitasse de proveito… Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave…
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E a um dava um guiso, a outro uma pulseira, de maneira que com aquela isca quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas…”
3. Alimentação
“Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca, não gostaram dele nada, nem o quiseram mais.”
4. Inocência e bondade
“Então começaram a chegar muitos, e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaças de água, e pegaram alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis.
…alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis.”
5. Cristianismo
“No domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu.
Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença, segundo parece.
E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse uma ao pescoço de cada um. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lhes primeiro beijá-las e, depois levantar as mãos.”
6. Levar por força um par destes homens
“E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se seria bom tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, e deixar aqui por eles dois destes degredados.”
7. Esta terra
“Traz, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, algumas vermelhas, outras brancas; e a terra por cima toda plana e muito cheia de grandes arvoredos.
…a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados…
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.”
Senti a necessidade de reler a Carta ao tomar conhecimento de mais um ataque aos povos nativos, com o assassinato de Claudione Rodrigues Souza, um índio (palavra incorreta para designar o povo que aqui vivia e vive) e ferimentos em outros seis no Mato Grosso.
As manchetes poderiam ser “Mais um índio assassinado e mais seis feridos”, pois é assim desde que Caminha escreveu a carta.
O documento deixa bastante clara a bondade deste povo em relação aos invasores de suas terras. Foram recebidos em paz e bem tratados. A carta mostra que quem impôs costumes (roupa), bebidas (álcool), religião, estupro e exploração (nas trocas) foram os portugueses.
O final da carta mostra a razão da atual violência: a terra, a água e a religião. “Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente.”
Salvar do quê?
São esses que vão à missa, confessam (será que contam tudo para o padre?), comungam e depois se organizam para matar inocentes. Esses são os fazendeiros.