No dia 5 de dezembro a eternidade recebeu uma figura conhecida em vida por milhões e milhões de pessoas. Estranho quando se é contemporâneo da história e figuras do nosso noticiário cotidiano se tornam referências históricas, aquelas cujos nomes aprendemos nos livros, da escola à universidade.
Nelson Mandela é um desses. Morreu aos 95 anos. Mais de um quarto desse tempo, 27 anos, passados em uma cela menor do que a despensa de uma Casa Grande. Dois metros por um e meio. Sim, aqui como lá, a UDN tem reservado um lugar confortável e sereno aos de baixo. Lá, na década de 1960, quando Mandela foi condenado à prisão perpétua, os 20% de brancos subjugavam a esmagadora maioria da população negra, em um vergonhoso, bárbaro e desumano sistema de segregação racial. Cerca de 80% do povo da África do Sul tinha então que portar uma espécie de passaporte, que limitava o acesso e o trânsito, mesmo entre bairros de uma mesma cidade.
Aqui, após o fim da escravidão, a Casa Grande também criou um regime de apartheid. Implícito e não positivado. Os negros foram excluídos do acesso à terra e enviados às periferias das grandes cidades, locais ainda hoje insalubres, inseguros, desamparados de todo e qualquer equipamento e serviço públicos. Exceto a presença policial. Às vezes ali. Por perto sempre. Institucionalmente assídua, para, na cor da pele, registrar o passaporte de acesso e restrição ao livre direito de ir e vir. Informalmente, ela está lá também, controlando, por meio das milícias, a venda de serviços, água, energia, gás.
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Mandela, prêmio Nobel da Paz, pegou em armas contra o terrorismo de Estado. Não, não há contradição. E não me refiro aqui ao fato de haver um prêmio de promotor da paz com o nome do inventor da dinamite. A partir de sua liderança popular a África do Sul aprovou em 1993 uma nova Constituição, estabelecendo a igualdade racial no país. No ano seguinte, foi eleito o primeiro presidente negro de um país negro. Até hoje seu rosto estampa as notas da moeda local. Que agora ganha um valor a mais, simbólico e histórico.
Tudo o que Mandela representa, a luta contra a opressão, pela liberdade, contra a fome e as desigualdades, não pode ser compreendido pelas elites econômicas e políticas do mundo ocidental. As do mundo desenvolvido e suas aparentadas de menor valor, inclusive as nossas. Por isso não vemos nenhuma matéria profunda, digna, sobre ele nos meios de opinião da Casa Grande. Nada além de frases esparsas, fragmentos da história. Algo que nos parece muito suspeito. E assim o é. Porque essa gente não preza por esses mesmos princípios.
São abutres que defendem o terrorismo de Estado, a humilhação pública e o apartheid dos corpos negros – olhemos para nossas fundações de menores e para o recente caso do Shopping Vitória e da Polícia Militar fascista do Espírito Santo – defendem o coronelismo rural, o assassinato, a indiferença e a miséria. Foram esses os que emprestaram carros de jornalismo para generais de pijama perpetuarem a desigualdade econômica e racial.
É por isso que a essa mídia cabe muito mais o elogio a uma figura caricata, medíocre e pequena como Joaquim Barbosa. Dado a rompantes de heroísmo, com o velho, hipócrita e raso discurso da ética e do combate à corrupção. Hipócrita, porque o tempo há provar o valor que Joaquim Barbosa dá aos princípios da moralidade. Raso porque seu discurso é seletivo e oportunista, ofende o bom senso, a justiça e a racionalidade.
Por isso acho estranho quando vejo a grande mídia privada falando de Mandela. Como “Guerreiro da Paz”, como certo dia no supermercado na capa de uma dessas revistas semanais. Fiz questão de virar e deixar a contracapa de frente, preocupado que outros se sentissem como eu, um parvo ao ver esse acinte. Estranho sim, contraditório seria se fosse sincero. Mas é oportunista, porque essa mídia é contra as cotas, o Prouni, a PEC das Domésticas, o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, a redução das taxas de juros, contra todas as iniciativas que ainda (mesmo que precariamente) tentam acabar com o apartheid racial que ainda vive o Brasil.
Por isso acho tão mais coerente nas capas dessa velha imprensa, os meninos pobres que [não] mudaram o Brasil. Eles não têm dignidade para falar de Mandela. A grandeza desse homem não cabe na mediocridade do conteúdo desses veículos. A eles, cai melhor a ilegalidade, tirania, despeito e traição de classe que é tão bem personalizada em Joaquim Barbosa.
A história certamente há de nos provar que o mundo precisa cada vez mais de homens como Mandela e cada vez menos de figuras como Joaquim Barbosa. A prova disso é que ambos são referências. Um, daqueles que lutam por um mundo mais justo, respeitado mesmo pelos adversários. O outro, apenas pela mídia decadente, separatista e antidemocrática brasileira.