A proposta apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso que estabelece excludente de ilicitude para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é inconstitucional e não encontra paralelo nem mesmo no período da ditadura militar. Estas são as principais conclusões de nota técnica elaborada pelo Ministério Público Federal encaminhada a parlamentares após análise do Projeto de Lei 6.125/19.
> Veja a íntegra da nota técnica do MPF
De acordo com o órgão, as novas regras instituirão um regime de impunidade para crimes praticados por militares ou policiais em atividades de Garantia da Lei da Ordem. O alerta é da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e da Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e de Sistema Prisional (7CCR), ambos do Ministério Público Federal.
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“Há uma autorização implícita, mas efetiva, para que as forças de repressão possam, sob o manto de uma operação de GLO, fazer uso abusivo e arbitrário da violência, com grave risco de adoção de medidas típicas de um regime de exceção, incompatíveis com os padrões democráticos brasileiros e do direito internacional”, diz o documento.
O projeto estabelece normas aplicáveis aos militares e aos policiais militares ou civis que eventualmente prestem apoio às GLOs. O principal objetivo da medida, como já admitiu o presidente Jair Bolsonaro, é reprimir manifestações públicas.
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Para o Ministério Público Federal, o governo pretende garantir aos agentes estatais um regime jurídico privilegiado em relação ao dos cidadãos em geral.
“Trata-se de instituir um permanente espaço de exoneração de responsabilidade das forças estatais de segurança pública. E isso quando o país experimenta as mais aviltantes taxas de letalidade policial, com um aumento de 4% apenas no 1º semestre de 2019, especialmente no estado do Rio de Janeiro, no qual se superará em 2019 o recorde de mortes provocadas por confrontos com a polícia. E mesmo após essa letalidade ter aumentado 19,6 % de 2017 para 2018, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, aponta trecho da nota técnica.
Desperta especial preocupação dos procuradores federais o parágrafo único do artigo 2º do PL 6.125, que considera exercer sua legítima defesa o militar ou o agente que repelir injusta agressão, atual ou iminente. O texto classifica de “injusta agressão” práticas capazes de gerar morte ou lesão corporal, assim como atos de terrorismo nos termos da Lei nº 13.260/2016.
“Esse dispositivo é descabido por presumir a licitude de uma conduta que é, em si, ilícita. Em realidade, esse preceito inverte o sistema jurídico constitucional e criminal, ambos baseados no máximo de contenção das forças de segurança, de modo a evitar o evento morte”.
Excludente de ilicitude
As excludentes de ilicitude são previstas na legislação penal para evitar a punição de determinadas condutas tipificadas como crimes, mas que são praticadas em circunstâncias que não revelam antijuridicidade, ou seja, contrariedade ao direito. Para os críticos da medida, as excludentes de licitude são uma “licença para matar” concedida a policiais e militares.
“O PL pretende alterar esse quadro normativo consolidado no direito brasileiro para criar novas hipóteses de impunidade para agentes públicos. E aí afronta um dos princípios centrais da Constituição, o princípio republicano – segundo o qual todos os agentes públicos devem responder política e juridicamente pelos próprios atos, conforme inclusive tem endossado o Supremo Tribunal Federal”.
Na nota enviada aos parlamentares, o MPF destaca que o propósito de garantir impunidade específica aos agentes públicos é ainda ressaltado pelos artigos 3º e 4º do PL. O primeiro prevê que, mesmo quando houver excesso doloso do agente na legítima defesa, o juiz poderá atenuar a pena. Já o artigo 4º, por sua vez, veda a prisão em flagrante de militares e policiais quando se aponte o exercício de legítima defesa.
Direito constitucional
“De destacar que esses dois artigos não têm incidência limitada às situações de GLO, mas sim para qualquer hipótese de alegação de legítima defesa. Eles são amplos e pretendem garantir que militares e policiais, em regra, não serão presos em flagrante quando alegarem que agiram em legítima defesa e, ainda, que suas penas por eventual excesso doloso poderão ser atenuadas pelo juiz.”
O documento lembra aos parlamentares que a Constituição assegura os direitos de reunião, associação, manifestação e protesto, e ressalta que essas são garantias absolutamente fundamentais em países como o Brasil – “de um longo passado de privilégios e de desigualdades abissais”.
Na última segunda-feira (25), ao chegar ao Palácio do Planalto, Bolsonaro disse que se a proposta for aprovada pelo Congresso vai impedir a ocorrência de “vandalismo” e “terrorismo”. O presidente lembrou que o direito à manifestação é assegurado na Constituição. O assunto ganhou destaque nas últimas semanas com a onda de protestos em outros países da América do Sul e a defesa feita pelo ex-presidente Lula de que os brasileiros deveriam sair às ruas contra o governo Bolsonaro. A excludente de ilicitude também consta do pacote anticrime enviado ao Congresso pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Mas o assunto causa grande controvérsia no Parlamento.