Sei que desembarcou no planeta azul em Uiraúna, um ponto longínquo do árido Alto Sertão Paraibano. Na pia batismal recebeu o nome de Luiza, que significa “guerreira gloriosa”. E por ali foi crescendo, até que em poucos anos já não cabia no pedaço de chão onde veio ao mundo.
Tentou um artifício para esticar sua permanência entre os manos, que eram dez, repetiu a 5ª série duas vezes para não interromper os estudos. Sua pequena cidade não tinha curso ginasial, mas logo percebeu que em algum momento se transformaria em mais uma ave de arribação, cumprindo a sina de milhões de seus conterrâneos.
O coração lhe pedia que travasse sua luta ali por perto, cedeu por alguns anos, ficou um bom tempo entre Patos e João Pessoa, onde estudou, e conquistou um canudo de papel em Serviço Social.
Seu humanismo cristão era incompatível com a brutal exploração a que eram submetidos os camponeses em regime de meia escravidão, onde o latifúndio cedia-lhes a terra, cujo aluguel custavam-lhes a metade de tudo o que produziam. Inconformada, engajou-se em movimentos da Igreja Católica que flertavam com as Ligas Camponesas, de Francisco Julião.
Lembro! Naquele tempo, mulher na política, nem pensar! A discriminação do passado seria algo semelhante à aversão de certos grupos religiosos quando hoje se pronuncia a palavra gênero.
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Sua militância em defesa de teses à frente do seu tempo lhe atraiu olhares enviesados, encharcados de preconceitos e ameaças de violência. Por essa e por outras, deu-se conta de que já não lhe era possível ficar perto dos seus, juntou seus teréns e, no comecinho da década de setenta, bateu asas e voou do seu sertão.
PublicidadeTímidos, foram seus primeiros passos naquele mundo apressado. Admirava-se do jeito sisudo dos paulistas, achava que em vez de andar, eles pareciam correr em busca de alguma coisa que nos primeiros dias ela não entendia. Sem hesitar ou perder tempo, num piscar de olhos, saiu-se mestra pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Trabalhava e militava. Militava e trabalhava. Aos pouco foi se distanciando dos arranha-céus da Avenida Paulista e se aproximando dos barracos de teto de zinco da megaperiferia, onde foi prazerosamente recebida. A convivência lhe ajudou a compreender as ansiedades daquela gente apressada. Nesse tempo ela foi apresentada a algumas pessoas dispostas a jogar uma pá de cal na ditadura moribunda e fazer do Brasil um país mais justo, sem fome e sem miséria. Era tudo o que ela queria ouvir e fazer. Mergulhou de cabeça, de braços dados com Lula, Zé Dirceu, Genoíno, entre outros, terminou sócia-fundadora de um partido de cenho franzido chamado: Partido dos Trabalhadores.
Visitava com frequência, conversava, e se interessava pelos dramas dos mais pobres e dos que moravam longe. Esses, lá pelas tantas, decidiram fazer dela sua representante, com seus votos a diplomaram, primeiramente, vereadora de São Paulo em 1982; depois, deputada estadual em 1986.
Mas sua maior façanha estava por vir! O ano era 1988, havíamos atravessado o Rubicão dos Anos de Chumbo, o forte cheiro de democracia impregnara a atmosfera política, e muito se falava nas diretas do ano seguinte. Ainda assim não era fácil admitir que uma mulher, migrante, vinda das bandas do Nordeste, candidata de um recém-nascido partido de esquerda, pudesse vingar e governar a granfinagem dos Jardins. Pois não deu outra: a danada, nas eleições daquele ano, atropelou preconceitos e passou a perna no capital. Na corrida pelo voto, sagrou-se campeã, chegando na frente de todo mundo, inclusive de Paulo Salim Maluf, aquele cujo sobrenome virou verbo. Lembro que na época as pessoas diziam: “Olha! Fulano malufou sicrano”. Sim senhor! Luiza Erundina de Sousa, a “guerreira gloriosa”, elegeu-se prefeita da maior cidade da América do Sul.
Conto essa história porque o ruído foi tamanho que atravessou o Rio Amazonas e desembarcou em Macapá, onde também o inusitado tinha dado o ar da graça. Um prefeito fora eleito, apesar das pichações nas igrejas: “Capi, terrorista-comunista”. Sim, eu, ex-preso na ditadura, acusado de ser terrorista e comunista, sem jamais ter dado um só tiro ou pertencer ao Partido Comunista, terminei eleito no mesmo dia. Foi a partir daquele 15 de novembro que eu ouvi falar de Luiza Erundina, confesso. Nunca mais a perdi de vista.
Luiza viveu um cerco permanente, mas resistiu bravamente, sem ceder um milímetro sequer às práticas a que outros sucumbiram. Inflexível diante do assédio, conduziu a prefeitura de maneira absolutamente republicana, recusou-se ao exercício patrimonialista e da corrupção, esgarçando suas relações políticas, causando-lhe dores de cabeça terríveis e permanentes ao longo de sua gestão, e que lhe acompanhariam nos anos seguintes, afetando sua militância no partido que ajudara a construir para enraizar a democracia e redimir os oprimidos. Isso durou até que não deu mais, ao ver o sonho se transformar em pesadelo. Virou a página, deixando a criatura para trás, mas preservando seus princípios éticos e sua enorme disposição de luta.
É o pouco que sei de Luiza, a guerreira gloriosa, que ao nascer, mesmo ante de Drummond ter escrito o poema, um anjo torto desses que vivem na sombra lhe disse: “Vai, Luiza! Ser gauche na vida”. E ela leva a sério até hoje!
Geraldo Lod, o sábio cacique dos galibis do Oiapoque, não a conhece, mas se a conhecesse certamente lhe diria: “Luiza, você é feita de outra massa”.
Salve Luiza! Parabéns por sua luta e persistência, obrigado por você existir!!!