Na segunda-feira passada, 12 de novembro, Porto Alegre lembrou os 40 anos do sequestro dos uruguaios Universindo Rodrígues Díaz e Lilián Celiberti, presos e torturados em 1978 na capital gaúcha numa ação binacional das ditaduras do Brasil e Uruguai, no âmbito da Operação Condor, a coordenação repressiva do Cone Sul que unia os regimes militares na caça clandestina aos dissidentes.
Universindo, Lilián e seus dois filhos escaparam da morte pela aparição inesperada de dois jornalistas da sucursal da revista Veja, o repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo JB Scalco, que denunciaram o crime e transformaram a operação secreta num escândalo internacional. A série de reportagens na revista conquistou o Prêmio Esso, o maior do país, e o livro sobre o sequestro recebeu os prêmios Vladimir Herzog e Jabuti.
A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia gaúcha e o Arquivo Histórico do RS levaram Cunha e Lilián a Porto Alegre, na semana passada, para um reencontro com a história. O jornalista, na sua fala, fez um contraponto entre a alegria do reencontro e a tristeza do retorno do ódio e do militarismo simbolizados na vitória de Jair Bolsonaro.
Cunha começou manifestando sua estranheza que um dos patrocinadores do evento, a Secretaria de Cultura estadual, não tivesse nenhuma notícia, nenhuma referência ao evento daquele dia: “Só posso entender esse silêncio como um efeito danoso da esdrúxula aliança entre o governador José Ivo Sartori e o capitão-presidente Jair Bolsonaro, o que acabou produzindo no Rio Grande do Sul esse aborto político chamado Sartonaro “, acusou Cunha.
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O Congresso em Foco publica abaixo, com exclusividade, o lamento do jornalista sobre “o presente que agora ressuscita as trevas do passado”:
“A alegria da suada vitória da democracia e da verdade contra a intolerância, o ódio, a truculência e as mentiras do sequestro, desatadas em novembro de 1978, transformou-se agora na tristeza e na derrota contra a intolerância, o ódio e a truculência que prosperam hoje — com tanta facilidade, com tanta futilidade.
PublicidadeÉ uma tristeza ainda maior.
Em 1964, os generais tomaram o poder pela força das armas e dos tanques.
Em 2018, o capitão-presidente e seus generais voltam ao poder pela força do voto.
Essa é a tristeza. Essa é a tragédia.
Parafraseando aquela velha propaganda do xampu: “Ei, você lembra dos generais? Eles não parecem os mesmos. Mas, a sua voz… quantas semelhanças?”
É a mesma ode à violência, à força, à intolerância, à perseguição, ao ódio, comuns no Brasil dos generais e agora revividas no Brasil do capitão-presidente.
Após 33 anos da queda da ditadura, temos a marcha batida da volta dos militares e do militarismo, com a proliferação de generais, coronéis e outras patentes na campanha eleitoral, resgatados com votações consagradoras nas assembleias estaduais, na Câmara dos Deputados, no Senado, ressuscitados pelo voto com poder e protagonismo nos principais gabinetes dos palácios, da Esplanada dos Ministérios e do poder em geral.
Após 21 anos de regime militar, o militarismo emergente da eleição de 2018 é o avesso de um país que ainda tentava se civilizar, na expressão mais ampla e radical da palavra.
O capitão-presidente defende a ditadura, justifica a tortura e tem na sua cabeceira, como favorito, o livro de um notório torturador, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, símbolo maior da violência fardada e institucional que marcou o centro mais emblemático da violência no país – o DOI-Codi do II Exército, em São Paulo.
O DOI-Codi da rua Tutóia, comandado durante 40 meses pelo coronel Brilhante Ustra, registrou no curto espaço de tempo de sua profícua gestão a marca de 50 mortes, obra e engenho do autor predileto do capitão-presidente, segundo apuração da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A cabeceira que escolta o sono e os sonhos de Jair Bolsonaro poderia ter outro autor, o delegado do DOPS gaúcho Pedro Seelig — se ele tivesse escrito um livro. Maior nome da repressão no RS, definido no livro inspirador de Ustra como ‘um verdadeiro irmão’, o delegado Pedro Seelig comandou pessoalmente, num 12 de novembro como esse, 40 anos atrás, a prisão na Rodoviária de Lilián Celiberti, iniciando ali o sequestro dos uruguaios.
Cínico, o capitão-presidente desdenhou outra confirmação vergonhosa da CNV: os 334 mortos e desaparecidos produzidos pelo regime de ódio e truculência que ele tanto elogia. Tempos atrás, ainda deputado e aparentemente inofensivo, Bolsonaro chegou a dizer numa entrevista para a TV: “Mataram só isso?… Deviam ter matado 30 mil, inclusive o Fernando Henrique Cardoso!…”
A Argentina dos generais de 1976 a 1983, uma ditadura três vezes mais curta do que a brasileira, certamente tem a admiração do capitão-presidente, porque atingiu em apenas 7 anos a marca macabra que os generais do Brasil não conseguiram em 21 anos de ditadura: 30 mil mortos, a maioria deles desaparecidos, com o saldo extra de 500 bebês sequestrados.
O advento da democracia na Argentina, para desconsolo de Bolsonaro, levou aos tribunais mais de 2 mil agentes públicos, entre militares, policiais e civis envolvidos com o terrorismo de Estado. Desse grupo, mais de 300 foram condenados, entre eles três generais, todos presidentes, embora nenhum eleito como o capitão brasileiro.
O pior deles, o general Jorge Rafael Videla, que implantou a ditadura em 1976, morreu na cadeia em 2013, aos 87 anos, cumprindo uma pena de prisão perpétua e mais 50 anos por roubo de bebês. A cadeia perpétua de Videla foi pela morte confirmada de 31 pessoas – bem menos do que as 50 mortas no DOI-Codi do coronel Brilhante Ustra, o predileto do capitão-presidente. Ao contrário do general argentino, o coronel brasileiro morreu aos 83 anos, em 2015 — impune, livre e solto como todos os colegas de farda e truculência da ditadura adorada por Bolsonaro.
A marca distintiva das ditaduras e seus adoradores é sempre o cinismo. São cínicos o tempo todo, mesmo na democracia. Em março de 2011, o jornal O Globo publicou um documento dos comandantes militares remetido ao então ministro da Defesa, Nelson Jobim, reclamando dos movimentos para implantar a Comissão Nacional da Verdade. Reclamavam que já tinham decorrido três décadas do fim — na expressão cínica dos comandantes —…”do chamado governo militar”.
Só um cínico poderia reclamar que a ditadura de 1964 fosse chamada de ‘governo militar… ’ Um governo militar que produziu 500 mil cidadãos investigados; 200 mil detidos por subversão, 50 mil presos nos primeiros 5 meses do golpe de 64;11 mil acusados em Auditorias Militares, 5 mil deles condenados; 10 mil torturados só no DOI-Codi do coronel Ustra, o literato favorito do capitão-presidente; outros 10 mil torturados Brasil afora; 10 mil brasileiros exilados; mais de 4.800 mandatos cassados, de vereador a presidente; 1.200 sindicatos sob intervenção; expurgo de funcionários público e militares; 3 ministros do Supremo afastados compulsoriamente; o Congresso Nacional fechado 3 vezes; 7 assembleias estaduais em recesso; censura à imprensa, ao teatro, ao cinema, às artes; quase 200 mortos, mais de 200 desaparecidos…
Tudo isso, apesar do cinismo fardado, é obra feita e acabada do ‘chamado governo militar’, que só pode ser reconhecido pelo que é e pelo que foi: uma ditadura, como reconhece, nostálgico, até o capitão-presidente, em alto e bom som.
Esse é o cinismo que volta agora a sobrevoar o país, assombrado por uma overdose de fundamentalismo religioso e messianismo que coloca Bolsonaro logo abaixo de Deus, o único a quem se subordina o capitão-presidente.
Resistimos à força, ao ódio, à truculência, ao preconceito e ao medo há 40 anos, nos tempos de sequestro e de tortura. Resistimos por causa de gente como vocês, que lutaram com vocês, que resistiram por vocês. Está na hora, inspirados por vocês, de juntar forças outra vez contra a treva que se arma no horizonte. Cedo ou tarde, venceremos!
Gente, obrigado por vocês existirem! Obrigado por vocês resistirem!
Obrigado a todos.”