Antonio Marcelo Jackson F. da Silva *
É senso comum observar que a arena política é, em primeira e última instância, o locus privilegiado para se debater e decidir – normalmente pelo voto – os impasses e/ou conflitos que a vida social espontaneamente produz. E, é de bom tom sempre lembrar, que tal senso comum aparece há cerca de dois mil e quinhentos anos em Atenas, na Grécia, passa pela República Romana, transita pelo Mundo Moderno, se expande nos séculos 18 e 19 alterando o entendimento de que a vontade da maioria deveria prevalecer para a garantia legal do direito das minorias, chega no final da primeira metade do século 20 e atravessa todo o período com a certeza de que a sentença de Carl von Clausewitz é verdadeira e, portanto, mais do que nunca, os freios e contrapesos da política devem se sofisticar e se ampliar.
Surpreendentemente, esse mesmo senso comum se vê caindo por terra surpreendentemente na terceira década do século 21 no Brasil. Se em todos os lugares a política se distancia da sociedade como forma de sofrer a menor influência para que possa diluir ou mesmo solucionar os impasses, em nosso país ocorre justamente o oposto. Numa paráfrase como que “invertida” a von Clausewitz, que afirmava que a “guerra é a continuação da política por outros meios”, podemos dizer que no Brasil a política é continuação dos conflitos da sociedade pelos mesmos meios.
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É, no mínimo, curiosa tal constatação. Contudo, não é difícil perceber em todos os níveis da vida política que a afirmação acima pode ser facilmente detectada. Nas câmaras de vereadores e prefeituras, nas assembleias estaduais e respectivos governos, na Presidência da República, Câmara dos Deputados e Senado, com raras exceções historicamente identificadas, o comportamento dos representantes assume uma postura que mais se assemelha a grupos de família, rua ou quarteirão defendendo seus interesses mais particulares do que propriamente a representantes de uma sociedade.
De certo que isso apenas confirma a máxima de Sérgio Buarque de Holanda cirurgicamente apresentada há décadas em seu livro “Raízes do Brasil”: a incapacidade do brasileiro médio em tratar a coisa pública como coisa pública ou, se preferirem, a prática basal da média dos indivíduos no país em agir por sobre o universo público como se fosse um bem particular. Esse comportamento patrimonialista possui raízes históricas e é bem provavelmente o primeiro problema para a nossa vida social e política. Nesses termos, podemos mesmo denominar como uma “primeira peça de um quebra-cabeças” que, se finalmente montado, poderá nos oferecer uma pálida imagem do que vem a ser o Brasil.
Dito isto, não é de se estranhar que a chegada de um indivíduo à arena política – pouco importando sobre o quê tratamos – constitui concomitantemente à primeira ação do mesmo enquanto indivíduo particular, qual seja a nomeação de amigos ou parentes para sua assessoria mais próxima; ou ainda de seus eleitores acharem perfeitamente natural que este representante político deva agir em prol dos pedidos privados de cada um. O que em qualquer lugar do mundo é tratado como anomalia, por estas terras é praticamente uma regra.
Continuando com nosso raciocínio, temos uma segunda “peça de nosso quebra-cabeças” e que se vincula às relações de poder que costuram nossa sociedade. Se, como num passe de mágica, voltarmos no tempo e desembarcarmos na primeira metade do século18, encontraremos uma sociedade na América Portuguesa em curioso conflito com a Metrópole. De acordo com diversas Cartas Régias, uma determinada prática dos colonos incomodava ou mesmo prejudicava os negócios de Lisboa por estas bandas: por aqui, de forma única na história da humanidade, a escravidão assumira um outro valor.
Se é possível identificar nos mais diversos locais a escravidão por dívidas, a escravidão por guerras, pela compra ou caça do corpo de outro indivíduo, o surgimento, prestígio e poder adquirido pelo traficante, entre outros, a figura do escravo propriamente sempre esteve vinculada à produção econômica sem qualquer embargo. No caso brasileiro, a novidade foi o entendimento do escravo como importância para a imagem social de seu proprietário. Em outras palavras, a riqueza e status deveriam ser medidas pela quantidade de escravos que uma pessoa possuía; principalmente, se esses escravos fossem domésticos, não participando diretamente da vida econômica daquele senhor.
Contudo, antes de continuar, alguém pode estar se perguntando: mas, que diabos isso tem a ver com o que estava sendo discutido acima? Como isso se vincula aos dramas da política brasileira atual? Tenhamos um pouco de paciência.
O fato é que, apesar dos protestos da Coroa Portuguesa, a sociedade colonial brasileira pouco a pouco construiu e consolidou a ideia de que a posse cada vez maior de escravos – particularmente domésticos – indicava o patamar do papel social daquele proprietário. Essa prática foi tão enraizada que não é difícil identificar nos arquivos históricos documentos em que as pessoas tratam de sua riqueza ou pobreza a partir da quantidade de escravos que possuíam, e isso valia também para o cativo que conquistasse sua alforria: para se tornar bem aceito pelas pessoas deveria, primeiramente, comprar escravos; e o ingresso no século 19, acompanhado da Independência do Brasil, em nada alterou o comportamento.
A figura do plantel de servos acompanhando seus senhores e senhoras pelas ruas das cidades foi retratada por Debret em inúmeros quadros e, mais ainda, quando por pressão externa da Inglaterra o tráfico foi oficialmente suspenso pela Lei Eusébio de Queirós em 1850 (oficiosamente perdurou até cerca de 1870), o preço do cativo no Vale do Paraíba Fluminense saltou para o equivalente a um terreno de 200 mil metros quadrados! Mas, como tudo já estava entranhado, nada impedia que um “homem de bem” comprasse escravos para alimentar e sustentar a importância de seu papel social.
O “resumo da ópera” é que se produziu em nosso país um tipo de teia que costura a sociedade quase exclusivamente cerzida por relações de poder. Dito de outro modo, o indivíduo na sociedade brasileira apenas adquiri destaque e honradez na medida em que tem sob seu mando um número expressivo de pessoas, preferencialmente se forem seus empregados. Essa situação já foi apresentada há tempos na obra clássica de Maria Sylvia de Carvalho Franco (“Homens Livres na Ordem Escravocrata”), onde sociologicamente a pesquisadora demonstrou a permanência das relações escravistas nos trabalhadores não cativos da região de Guaratinguetá, em São Paulo. Tal realidade se perpetuou com a chegada dos imigrantes italianos, alemães, japoneses, entre tantos, que ingressaram em nossa sociedade em parâmetros verossimilhantes à servidão.
Essa teia que nos costura e retém atravessou o século XX e chegou ao século XXI alimentando e sendo alimentada por todos os matizes que em sua esfera mais simbólica representam essa hierarquia entre as pessoas. Da excessiva concentração de renda chegando até a existência em demasia da figura da empregada doméstica, essas relações escravistas ou relações de poder se perpetuam em nossa sociedade e geram como consequência uma terceira “peça de nosso quebra-cabeças”, a saber, a inacreditável capacidade de fácil aderência do meio social brasileiro a qualquer ideologia que defenda uma ordem hierarquizada para os indivíduos, ou seja, qualquer ideia que dê a cada um valor desigual na sociedade.
Se efetivamente as relações de poder que são geradas por essas relações escravistas nos remetem a uma hierarquia que, por sua vez, produz inevitavelmente uma desigualdade, essa desigualdade passa a ser necessária para o meio social. Explica-se. Numa sociedade onde o princípio de que “alguém manda, alguém obedece” está enraizado a tal ponto que é o elemento que costura as próprias relações sociais, então a desigualdade gerada por essas práticas é o resultado mais do que esperado. Assim, a desigualdade no Brasil não é, necessariamente, o fruto de uma concentração de renda secular: ela e a própria concentração de renda são frutos de uma relação de poder que hierarquiza cada indivíduo em relação aos demais, transformando a todos em elos de uma corrente que se posiciona na vertical e que somente ganha sentido nessa posição. Porém, para dar escopo a esta prática, faz-se necessário a adesão de elementos ideológicos que justifiquem esse ordenamento das pessoas.
Não é de estranhar que no mesmo período em que passaram a ser discutidas com ênfase as propostas abolicionistas na segunda metade do século XIX, coincidentemente chegam ao Brasil teorias racistas e rapidamente são aceitas e difundidas pela Escola de Direito do Recife. Dito de outro modo, a vinda do Conde de Gobineau como embaixador francês em nosso país foi pura e simples obra do acaso; mas, a aceitação “de pronto” das teorias raciais apresentadas por ele justamente naquela década de 1870 onde a sociedade brasileira começava a ver no horizonte o fim da servidão e caiu como uma luva mais do que necessária para que as hierarquias sociais permanecessem, isso foi muito mais do que acaso. E aqui o capricho perverso do destino se apresentou!
Futuramente, nos Estados Unidos e África do Sul, o racismo se consolidou a partir de formas espaciais-segregacionistas, a saber, existiam áreas exclusivamente para brancos e áreas exclusivamente para negros, fazendo com que, ainda sendo de qualidade distinta, existissem nos dois lados escolas, faculdades, pequenas empresas, que dariam conta das respectivas necessidades dos grupos sociais. No Brasil a teoria racista adotada foi qualitativa, ou seja, ao invés de serem determinados espaços para a circulação de negros e espaços para a circulação de brancos, as teses raciais de Gobineau defendiam o princípio da “qualidade” (sempre entre aspas) que cada raça possuía, a saber, o amarelo, a emoção, o negro, a força física, e o branco, o uso da razão.
Percebe-se que nessa distinção “qualitativa” caberia ao negro o trabalho mais braçal (pois aprimorariam suas “qualidades”) e ao branco as atividades mais nobres e a própria administração do poder público e das empresas, visto que necessitariam de seres “racionais” (também entre aspas) para seu funcionamento. Soma-se ainda que a “mistura das raças” – ainda mais no Brasil, com uma sociedade indiscutivelmente miscigenada – era negativa, ou seja, ao invés de adicionar as qualidades, subtraía. Assim, o povo brasileiro por ser fundamentalmente pardo, era inferior aos demais – argumento que diversas pessoas já devem ter ouvido alguma vez na vida. Tal situação provocou em inúmeros indivíduos o desejo de um “embranquecimento” da sociedade! Sim, não foram poucos os que defenderam tal absurdo como, por exemplo, a pura expulsão dos negros e pardos do Brasil (coisa que esvaziaria o país!), até a maior imigração de europeus em geral para “purificar” a raça.
O fato é que ao ser adotado e disseminado pela Escola de Direito do Recife, esse racismo encontrou na área jurídica brasileira o espaço ideal para se consolidar e influenciar boa parte da sociedade com seu discurso ideológico. Desde a fundação, o curso de Direito (originalmente em Olinda em 1827 e transferida para Recife em 1854) pernambucano pautou-se pelo debate filosófico e influência no pensamento jurídico brasileiro. Não à toa que o primeiro Código Civil de nosso país foi da verve de Clóvis Bevilaqua, aluno entre 1878 e 1882, e que reuniu nesse conjunto de leis tanto elementos racistas quanto os que defendiam evidentes hierarquias sociais.
Com isso, se é possível identificar na Constituição norte-americana o princípio de que a lei deve proporcionar a felicidade das pessoas; se é possível ver nos ideais da Revolução Francesa a igualdade de todos perante a lei; no caso de nosso país a primeira lei civil aparece simplesmente para consolidar a desigualdade! Há no Código Civil de 1916 o primeiro grande exemplo sobre o que esse texto expôs logo no início: ao contrário dos demais países, a lei no Brasil – que é fruto das relações políticas – consolida os conflitos e impasses gerados espontaneamente pela sociedade. Se nas demais nações a lei serve para rousseanamente produzir alguma igualdade, por aqui com raras exceções a lei se presta tão somente a assentar e/ou justificar as hierarquias sociais.
Mais do que isso, a defesa das teses racistas a partir de argumentos jurídicos ou que juridicamente sustentassem as ações do governo, construíram paulatinamente um escopo ideológico no meio social onde os elementos que não fossem brancos, seriam tratados como inferiores ou mesmo fora dos padrões aceitos, tanto é que, em pouco tempo, nos anos de 1930, os cultos de religiões afro-brasileiras foram considerados crime na lei penal (item que apenas desaparece no Código Penal de 1942).
Por outro lado, no meio social, a ideologia de que qualquer valor que não fosse branco seria considerado inferior ou marginal ganha corpo. Nas décadas seguintes passou a ser comum o exemplo da foto clássica do casal onde a tez da pele de ambos era branqueada e mesmo é possível resgatar relatos de famílias negras onde o discurso comum passou a ser que eram inferiores. E tal retórica também valia para as populações indígenas.
Dessa forma o espaço ocupado por negros, indígenas e pardos nos cargos de destaque no poder público e nas empresas públicas ou particulares passou a ser nulo. Se paradoxalmente no século 19, com a escravidão vigente, é possível identificar engenheiros, médicos, advogados, pensadores em geral, negros – mesmo sendo exceção à regra -, entre as décadas de 1940 até o final do século 20 cria-se o mais completo hiato. Bem provavelmente nesse período é que o racismo no Brasil se apresenta de maneira lamentavelmente plena e na forma em que Gobineau descrevera: tivemos atletas e artistas negros (a força física dos pretos com a emoção dos amarelos) sem termos os mesmos exemplos no meio intelectual, político, militar ou qualquer que seja. Quantos presidentes negros? Quantos governadores negros? Quantos juízes negros? Quantos almirantes negros? Quantos brigadeiros negros? Quantos generais negros? Quantos diretores de empresas negros? Para todas essas perguntas a resposta é fundamentalmente a mesma.
Nesse sentido, poderíamos repetir o argumento para indígenas, mulheres, pardos…há uma legião de excluídos, ou antes, inferiorizados, e que naturalmente não se candidatam, não se elegem, não são representados, afinal, conforme o presente texto afirma desde o início. A política no Brasil não se presta para o debate e para indicar caminhos que solucionem ou ao menos diluam os conflitos produzidos pela sociedade: aqui a política na maior parte das vezes apenas confirma o caos ou, se tanto, defende os interesses privados daqueles que deveriam representar os objetivos públicos.
Frente a isso, chegamos a uma espécie de encruzilhada. Ou bem enfrentamos nossos demônios e entendemos de uma vez o papel que a arena política deve exercer, ou fracassaremos brutalmente enquanto sociedade e governo. Se o dilema for mantido ou não existir resposta para a primeira questão, numa paráfrase a Sérgio Buarque de Holanda, poderemos dizer mais à frente, sobre os escombros, que a ideia de país, no Brasil, nunca passou de um lamentável mal-entendido.
*Doutor em Ciência Política. Professor do Departamento de Educação e Tecnologias da Universidade Federal de Ouro Preto.
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