Muitas pessoas, instituições e órgãos da mídia não entendem bem o que são os direitos humanos (DH), tal como aparecem na Declaração Universal das ONU de 1948 (vide). Nas Américas, os DH são confundidos com a concepção dos fundadores dos EUA, que, para evitar a igualdade de pobres, escravos e mulheres com brancos e ricos, identificaram DH com direitos civis. Salvo o direito ao voto (que é indireto), os principais direitos “humanos” são: “liberdade” de expressão (ou seja, a liberdade irrestrita dos oligopólios da mídia), o “direito” de portar amas e o direito de propriedade (de fato, a grande propriedade).
Fora da área dos EUA, os DH, em sentido técnico, são os que protegem as necessidades imprescindíveis da condição humana, como o direito a não ser perseguido, privado da liberdade, torturado, morto, humilhado, ou permitir que fique sem condições de vida digna (educação, renda, moradia, saúde, etc.). O sujeito ativo da violação de um direito humano é um poder organizado (estados, seitas, milícias, corpos de segurança, plutocratas, etc.) e os passivos são indivíduos ou grupos indefesos.
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Os DH foram realçados pela esquerda, que denunciou que os privilégios dos cidadãos protegiam a exploração capitalista. São bem conhecidos os trabalhos em que os socialistas primitivos e, depois, Marx e Engels, os anarquistas, a Escola de Frankfurt, a Nova Esquerda e outros, defendem a condição humana como fortemente ligada à questão social. (vide 1, 2, 3, 4, 5)
O conselheiro da embaixada brasileira na Bolívia, Eduardo Paes Sabóia, entendeu que os DH eram mais importantes que a qualificação ideológica. Lamento muito que minha conclusão pareça (embora não seja) semelhante à sustentada pelo pior da direita brasileira. Pensem, porém, que a direita defende a Sabóia como provocação contra o governo brasileiro, e como estímulo à xenofobia e ao racismo contra o povo boliviano, ao que atacam desde a posse de Evo Morales. Será que não sabemos que os neofascistas sempre foram inimigos mortais da proteção de legítimos refugiados, como o prova o recente caso Battisti?
Além disso, a direita brasileira se identifica com este refugiado, que é uma versão em miniatura dos algozes brasileiros.
Também lamento que os grupos autopercebidos como esquerda não consigam analisar a situação e caiam no maniqueísmo de que tudo é preto ou branco. Entendo que eles queiram se diferenciar da direita, mas deveriam tentar pensar com independência.
PublicidadeComo antigo militante de DH, entendo a posição de Sabóia, mas não justifico ao embaixador Marcelo Biato. Ele não deveria ter dado asilo a Roger Pinto Molina (vide), por causa de sua truculenta figura de latifundiário, golpista, e autor do massacre de El Porvenirem, em 2008. (Vide)
Ele fez algo que no Brasil é rotina: matar índios e pobres. Suas vítimas são 19, que em nosso país se fazem em algumas horas. Mas é claro que isso não pode ser usado como pretexto. O Estado boliviano tem a honestidade de condenar genocidas, enquanto os crimes contra os DH são tratados no Brasil com maior leniência que uma infração de trânsito.
O embaixador cometeu um erro, pois os crimes de Molina não são nem políticos nem comuns, mas crimes de lesa humanidade.
Entretanto, o que podia fazer Sabóia? Uma opção era entregá-lo ao governo boliviano, mas talvez ele não tivesse certeza sobre os crimes de Molina. Eu teria tido a mesma dúvida no lugar dele. A outra era trazê-lo para o Brasil, o que exigiu muita coragem. Os que nunca lidaram com refugiados e perseguidos deveriam imaginar a aflição insuportável de um militante de DH, público ou privado, em face ao sofrimento destas pessoas, agravado ainda pela indiferença dos altos dignitários e a superburocracia. Sabóia atuou sob os efeitos de seu senso ético que falou mais alto que a índole desprezível do asilado. Obviamente, sou contrário ao famoso non-sense de que devemos “amar os inimigos” (sic), mas sim acredito que os inimigos devem ser respeitados, o que é diferente.
O mérito principal de Saboia foi o de colocar sua consciência acima de fetichismos como obediência ou disciplina, como fez a Antígone de Sófocles ao desafiar o rei Creon (vide). Quem se limita a cumprir ordens não é um ser vivo: é um robô. Uma população robô só serve a uma ditadura militar. Outro mérito importante de Sabóia é confessar que ele não tem vocação de carcereiro, enquanto muitos políticos bajulam as corporações repressoras.
A solução não é “perdoar” Sabóia, porque ele não fez nada errado. O erro foi feito pelo embaixador. O governo brasileiro deve reconhecer que Sabóia atuou em defesa dos DH, pois não tinha o dever de avaliar os crimes de Molina.
Devem ser feitas, ao mesmo tempo, três coisas:
(1) Elogiar a ética e a coragem de Saboia;
(2) Confessar que o asilo dado por Biato a Molinafoi um erro.
(3) Submeter o pedido de extradição da Bolívia ao STF. Nesse caso, a AGU deverá estudar em detalhe o processo de Molina, para verificar se realmente ele foi instigador do massacre. Se isso acontece, a União deve advogar por sua entrega à Bolívia.
O posto histórico brasileiro de vice-campeão americano de chacinas de civis não autoriza a considerar banais os massacres de outros povos. Além disso, o país pode virar uma Miami dos fascistas bolivianos.