Por Elisiane Santos e Ludmila Reis Brito Lopes*
É desrespeitoso com a luta histórica dos movimentos negros e incompatível com os princípios constitucionais de igualdade e não discriminação a celebração da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel no dia 13 de maio.
Tal medida aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, quando grande parte da população negra não se mantinha mais nos cativeiros, por força da luta e resistência dos movimentos negros nos quilombos, nas irmandades, nas rebeliões como a Revolta dos Malês, bem como em razão das pressões internacionais, tendo sido o Brasil o último país da América a fazê-lo. A Princesa Isabel, assim, somente cumpriu o papel de formalizar a libertação já insustentável no cenário nacional e internacional à época.
Contudo, a libertação foi realizada sem qualquer política de emprego e educação à população negra, o que resultou na estrutura desigual e perversa que historicamente pautou a sociedade brasileira, relegando aos negros e negras, que construíram o país, o lugar da opressão, da discriminação, da pobreza, do trabalho precário, da criminalização, impondo esforços sobre-humanos às gerações que se seguiram, para reverter a situação de exclusão social que lhes foi imposta pelo Estado racista.
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É importante destacar que além de não terem sido assegurados postos de trabalho formais, perpetuando-se a exploração do trabalho nas fazendas e nos serviços domésticos, em condições precárias, não houve medida reparatória até hoje em relação aos três séculos e meio de escravidão, mediante reconhecimento de terras ou pagamento de valores indenizatórios à população negra. As ações afirmativas conquistadas ao longo das últimas décadas constituem medidas necessárias à efetivação de direitos, como o acesso à educação e ao ensino superior. E há ainda necessidade de medidas compensatórias para assegurar a igualdade de oportunidades no trabalho, direito também reconhecido pelo Estatuto da Igualdade Racial[1], Lei 12.288/2010, que prevê a responsabilidade do Estado e da atividade empresarial em promover tais ações.
Portanto, não há motivos para comemorar a abolição formal da escravidão, quando até os dias atuais se luta por políticas de igualdade racial no trabalho, no acesso à educação, na representatividade nos espaços institucionais, na mídia, na publicidade, no cumprimento da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, quanto ao ensino de cultura afro-brasileira nas escolas, no combate ao racismo em todas as suas formas.
A data é considerada pelo movimento negro como dia nacional de luta contra o racismo, e reconhecida como tal por governos anteriores, como faz certa declaração da falecida Ministra Luiza Bairros, responsável à época pela então Secretaria de Políticas de Promoção Racial – SEPPIR, atualmente extinta, em matéria publicada pela Agência Brasil no ano 2014, Lei Áurea não é motivo de comemoração, afirmam movimento negro e Seppir.
Não se pode admitir que integrantes do Poder Legislativo, que exercem mandato de representação da sociedade, desconsiderando a verdadeira história de luta pela abolição da escravidão no Brasil, prestem homenagens a uma data que marca opressão e violação de direitos humanos fundamentais à população negra, formalmente liberta, mas sem condições de dignidade e igualdade de oportunidades. O racismo estrutural persiste no Brasil e ainda há muito a ser feito para que os 54% da população negra, formada por pretos e pardos, tenham pleno acesso aos direitos sociais. Na Câmara Federal, menos de 25% dos deputados são negros, e isso porque houve elevação da representatividade negra na última eleição. Nos Estados da Federação há assembleias legislativas que não tem qualquer representatividade negra. O censo do Poder Judiciário (CNJ, 2013) aponta 15,6% de magistrados entre pretos e pardos. O mesmo se repete em outras estruturas de poder, instituições, empresas públicas e privadas.
Em relação às condições de trabalho, consoante dados da PNAD (IBGE), divulgados em 17.11.2017, 63,7 % dos desempregados são oriundos da população negra. Além disso, os dados da síntese de indicadores sociais, divulgados em 15.12.2017, mostram que, entre os 10% mais pobres da população brasileira, quase 80% eram pretos ou pardos. No que concerne aos números de violência, o peso da desigualdade racial é absurdo. A taxa de homicídios de negros cresceu 23,1 % de 2006 a 2016, ao passo em que entre os não negros reduziu 6,8 % no mesmo período. Com o recorte de gênero incluído, a taxa de homicídio de mulheres negras aumenta para 15,4 %, enquanto de mulheres não negras houve queda de 8 %. Dados esses extraídos do Atlas da Violência, organizado pelo IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Some-se a isso o fato de, nos últimos tempos estar se tornando frequentes manifestações de racismo nas redes sociais, em locais públicos e até expressadas por autoridades.
Tais situações não podem ser reforçadas com o enaltecimento da nobreza, que deixou de assegurar direitos à população negra, em detrimento do reconhecimento da luta dos verdadeiros heróis e heroínas da sociedade brasileira no processo que levou à abolição da escravidão, tão bem retratada no samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, que emocionou ao resgatar a história do povo negro, nas figuras de Luiza Mahin, Dandara, Akotirene, Tereza de Benguela, Marielle, tampouco podemos apagar o herói Zumbi dos Palmares e abolicionistas como Luiz Gama, Dragão do Mar, Esperança Garcia, Maria Firmina dos Reis, entre outros.
Diante disso, merece repúdio da sociedade comemorações e homenagens à Princesa Isabel, desprovidas da necessária crítica às condições em que se deu a abolição e aos motivos que levaram à promulgação da Lei Áurea. Tais homenagens representam um insulto à população negra, reforçando o racismo estrutural, com a omissão de fatos históricos que constituem direitos fundamentais à memória, informação, cultura e cidadania do povo brasileiro.
* Procuradoras do Trabalho, integrantes do Coletivo Transforma MP e do Grupo de Trabalho de Raça da COORDIGUALDADE – Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho.
[1] Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas.
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