No mês em que João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart, celebra o centenário do pai, as manifestações do presidente Jair Bolsonaro e de integrantes do governo minimizando o golpe de 31 de março 1964 revoltaram o filho e a família de Jango.
“Ele está comemorando uma tragédia que se abateu sobre o povo brasileiro durante 21 anos de obscurantismo. Durante 21 anos o povo brasileiro foi impedido de votar para presidente da república. Durante 21 anos foi fechado várias vezes o Congresso Nacional”, afirmou o filho de Jango em entrevista à agência de notícias Uniceub (Centro Universitário de Brasília).
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Bolsonaro, durante a semana, mudou o tom e deixou de falar “comemoração”, para tratar como “rememoração”. O filho, que foi candidato à Presidência no ano passado, não teme que as manifestações do governo federal consigam reescrever a história. “Esse ano é o centenário do Presidente João Goulart. Um presidente que saiu deposto inconstitucionalmente da Presidência da República. O ódio contra o presidente João Goulart dura 55 anos, quer dizer, ele continua de pé”. Confira abaixo a entrevista com João Vicente:
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O que o senhor acha das declarações de Jair Bolsonaro sobre o golpe militar de 1964?
Partindo de quem tá partindo, principalmente de Bolsonaro, não é de se esperar outra coisa. Um homem que elogia (Augusto) Pinochet (ex-presidente do Chile) , elogia (Alfredo) Stroessner (ex-presidente do Paraguai), que no impeachment da Presidente Dilma outorga o seu voto em homenagem ao Brilhante Ustra (coronel do Exército), como o maior torturador desse país, não era de se esperar outra coisa.
Isso aí são as fanfarronices dignas de quem não desceu da campanha eleitoral ainda e fica brincando no Twitter e no Facebook, sem se dar conta de que é presidente de todo um país e não mais um bando de milicianos que o acompanham. Isso era de se esperar. Não tínhamos nenhuma dúvida de que haveria, de parte dele, esse tipo de baboseira. Dizer que não houve golpe no Brasil é uma baboseira. Ele não está comemorando o dia 31.
PublicidadeEle está comemorando uma tragédia que se abateu sobre o povo brasileiro durante 21 anos de obscurantismo. Durante 21 anos o povo brasileiro foi impedido de votar para presidente da República. Durante 21 anos foi fechado várias vezes o Congresso Nacional. Durante 21 anos se cassou mandatos de parlamentares. Durante 21 anos caçaram mais de 6 mil militares. Foram cassados mais militares nacionalistas do que civis políticos nesse país.
Então esse tiro pode sair pela culatra. Inclusive, já estamos sabendo disso: manifestações de setores militares moderados que não estão conformes com isso aí. Isso não se comemora. Estão marcadas manifestações para domingo.
Pode detalhar pra gente o que o senhor, sua família e a sociedade pretendem fazer para os próximos dias?
Esse ano é o centenário do Presidente João Goulart. Um presidente que saiu deposto inconstitucionalmente da Presidência da República, derrubado por um golpe de estado, aos 44 anos. Foi o único presidente que morreu no exílio lutando pela liberdade e pela democracia.
Estão aí milhares de pessoas que vão sair às ruas. Em São Paulo, a Marcha do Silêncio. Em Brasília, várias passeatas em homenagem às vítimas da ditadura. Estamos cansados de saber dos vários documentos liberados sobre a ditadura. Ou seja, um homem que quer negar o golpe de estado tem que ficar falando sozinho mesmo.
O que o senhor considerou sobre a manifestação do Ministério Público, da Defensoria Pública, que repudiaram essa ação do Bolsonaro?
Eu acho muito correto. Tanto essa ação que entrou, acho que do DPU (Defensoria Pública da União), quanto do MP (Ministério Público), são em defesa da liberdade, da constituição. Como um Presidente nega um acontecimento histórico e vai festejar tortura, vai festejar desaparecimentos? Nós estamos dando apoio e toda nossa solidariedade a esses procuradores que entraram com essas medidas, porque a verdade é que o Brasil não precisava de uma imbecilidade de tal tamanho cometida por um presidente eleito.
Quais as lembranças que o senhor tem desde 1964 até o período do exílio?
Nós escrevemos até um livro, “Jango e eu”, que foi finalista do Prêmio Jabuti no ano de 2017. Nós nos relembramos com muita tragédia. Foram milhares de pessoas que foram banidas de seu país, de sua terra, morreram no exílio. O próprio presidente João Goulart se torna o único presidente a morrer no exílio, lutando pela liberdade. O único presidente constitucional deste país a morrer no exílio, em circunstância até hoje investigadas.
O MPF ainda mantém aberto o inquérito sobre essa investigação, e nós estamos esperando até hoje que sejam ouvidas as testemunhas, os agentes secretos que moram nos Estados Unidos. Mais de 26% das nossas exportações são dirigidas à China. Então, ele está se lixando para a opinião pública do país. Um homem que tem o Beato Salu, que é uma das pessoas mais incompetentes dentro do Itamaraty fazendo a política externa brasileira, não pode fazer outra coisa.
O senhor não teme que medidas como essa do presidente e de seus aliados tentem mexer na história do Brasil? Acha que tem chance de alguma efetividade disso?
O ódio contra o presidente João Goulart dura 55 anos, quer dizer, ele continua em pé. Nós temos muitas coisas a resgatar. É porque ele tinha razão ao querer implantar as reformas de base. Não vai ser o Bolsonaro que vai destruir a história de Jango.
A história de Jango se sobrepõe muito à biografia de Bolsonaro. Nós temos que saber o seguinte: o destino prepara homens para morrer de pé, caírem de pé. E outros para se arrastarem ajoelhados ao império americano e subservientes, como ele está entregando o país ao mercado internacional, destruindo os direitos dos trabalhadores, destruindo os direitos previdenciários desse paí, destruindo todos os direitos que a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) outorgou a esse país, entregando o petróleo nacional, entregando a Eletrobras. Nós estamos muito tranquilos a esse respeito, com os ataques a Jango por Bolsonaro e a sua tropa.
O que o senhor espera que a sociedade faça diante dessa ação do presidente?
Nós temos que esperar esses acontecimentos, que são muito recentes. Mas, um governo que chega com 60% dos votos brasileiros, quase. E não fez 100 dias, já despencou 16 por cento, ele cai sozinho. Eu acho que não precisa fazer muita coisa. Agora, temos que reunificar os nossos discursos. As oposições não podem mais ficarem divididas.
Eu acho que nós temos que construir uma agenda progressista, sem colocar candidaturas à frente, ou seja, nós temos que nos preparar para enfrentarmos essa tormenta, que sem dúvida, mesmo constitucional, vai se abater sobre o Brasil. Eu não acredito que ele tenha muito tempo para se segurar aí na presidência da república com esse tipo de atitude de ódio. Atitudes que não unificam em nada os brasileiros. A eleição acabou, e ele não se deu conta disso.
Como o senhor vê as declarações sobre o golpe ter sido necessário para que fosse evitado um governo comunista?
Eu vejo uma ignorância democrática nessa posição. Esse ministro das Relações Exteriores chegou a dizer que o aquecimento global é fruto de uma sísmica nacional, pelo amor de Deus! Como é que nós vamos ter um ministro de relações internacionais que diz uma barbaridade desse tipo? Isso é um ministro, que o Bolsonaro disse que ia sair do Acordo de Paris. O que é uma coisa gravíssima. Aí ficou o dito pelo não dito. Esse ministro que apoia a transferência da embaixada brasileira de Tev Aviv para Jerusalém. Nós vamos perder todo um mercado de carnes brasileiro no setor primário, que inclusive apoiou Bolsonaro. Nós vamos perder para o mundo árabe. Como é que um ministro desse vai ter credibilidade para falar de golpe?
* esta entrevista foi dada à agência de notícias Uniceub (Centro Universitário de Brasília)
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