Coletivo Vote Nelas *
“Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Essa é uma emblemática frase de Simone de Beauvoir, filósofa feminista que fez história discorrendo sobre relações sociais, gênero e mulheres.
A frase foi escrita há mais de 70 anos e se coloca concreta diante de nossos olhos na política brasileira em 2020. Nesta semana, diante da maior pandemia global em um século, junto de uma grave crise política e econômica, assistimos à escolha de um novo ministro da Saúde. O último que esteve no cargo não permaneceu nem mesmo por um mês. Um dos cotados para assumir é Ítalo Marsili, médico e youtuber, que recentemente associou a crise democrática com o direito das mulheres ao voto.
Leia também
Simone de Beauvoir definitivamente tem muito a nos ensinar. O atual governo vem desde sua campanha se estruturando sob narrativas agressivas, sexistas, machistas e misóginas. Vale ressaltar a ausência de mulheres em cargos de liderança no governo federal, que também é um reflexo da realidade de toda a política brasileira. Só 11% das cidades são lideradas por mulheres. Entre os estados brasileiros, apenas um é governado por uma mulher. No Poder Legislativo, 15% de deputadas federais e quase um quarto das câmaras municipais compostas exclusivamente por homens, embora as mulheres representem 52% da população brasileira.
Ao contrário do que pensa Marsili, o Instituto V-Dem, ligado ao Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, a representação de gênero é uma principais variáveis que contribuem para o desenvolvimento de uma democracia estruturada e fortalecida.
Outra contribuição relevante para essa pauta foi a pesquisa Jornada da Candidata, lançada em fevereiro deste ano pelo coletivo Vote Nelas. Uma pesquisa qualitativa com mais de 70 horas de entrevistas com mulheres candidatas, eleitas e não eleitas de todas as regiões do Brasil. A pesquisa tinha o objetivo de entender e sistematizar como é a trajetória das mulheres que se lançaram na política.
PublicidadeO resultado foi muito consistente, o contexto do país é o estopim para as mulheres entrarem para a política, uma espécie de chamado interno que motiva e inspira as mulheres a serem candidatas e fazerem parte da mudança que acreditam.
Outro ponto de destaque é a forma como a candidata é recebida pelos partidos políticos, a pesquisa mostra que é comum essas mulheres serem infantilizadas nesse processo, e assim, suas candidaturas tratadas como sendo de baixa competitividade, consequentemente recebendo menos apoio do partido. E nesse assunto a pesquisa é muito clara, “sem dinheiro não há campanha”. O apoio financeiro dos partidos para as campanhas femininas é crucial para que elas sejam eleitas.
Outro fato trazido na pesquisa é que a política é um jogo em que as cartas são dadas por homens. As lideranças dos partidos são as pessoas que definem para onde vai o dinheiro das campanhas, além do apoio e exposição durante o período eleitoral, e fazer essa negociação é extremamente importante, e ao mesmo tempo desafiador.
Ao final, a pesquisa traz um capítulo denominado “Coisas que ninguém vai te contar”, descrevendo desde o impacto na vida pessoal das candidatas durante o processo eleitoral, que vai da relação com a família até saúde física e mental. Nesse capítulo também é descrito que essas mulheres sofreram apenas por serem mulheres, o machismo na sua forma mais clara e nítida, uma barreira cada vez mais visível.
Por fim, a pesquisa relata como esse processo exaustivo se encerra de forma parecida, salvo exceções traumáticas, as mulheres relataram que a saída da campanha eleitoral é de um entusiasmo contagiante. Sendo esse dado uma pista que se conecta com as reflexões sobre mulheres feitas por Simone de Beauvoir. Afinal, falar de mulheres na política é, antes de qualquer coisa, falar sobre liberdade.
Dando continuidade a esse exercício libertário de uma forma ainda mais concreta, as mesmas criadoras da pesquisa Jornada da Candidata encerram esta semana as inscrições para o Programa de Embaixadoras Vote Nelas. O coletivo oferecerá materiais e acompanhamento semanal para que mulheres de todo o país possam criar as embaixadas Vote Nelas em seus municípios. O coletivo é suprapartidário e tem como pilares a democracia, a defesa da vida da mulher e a promoção de mulheres em espaços de poder. Ele terá este ano um único foco: mobilizar eleitoras para eleger mais mulheres para as câmaras legislativas municipais.
Já são mais de 400 mulheres inscritas de todas as regiões do país. O programa está estruturado em uma trilha de três etapas: Clube de Estudos, Mulheres em Rede e Embaixada Vote Nelas com duração aproximada de um mês até que a embaixada seja oficialmente lançada.
Enquanto o governo se distancia a passos largos da ciência e de projetos consistentes, as mulheres da sociedade civil se organizam unidas para construírem juntas um Brasil que represente a todas as pessoas.
* Vote Nelas é um coletivo independente e suprapartidário que trabalha para que todas as mulheres se reconheçam como uma força política. Fundado em 2018, é composto por um time de voluntárias: Adriana Mendes, Amanda Brito, Carla Mayumi, Erika Romay, Drica Guzzi, Duda Alcantara, Gisele Agnelli, Julia Piva, Karolina Bergamo, Maisa Diniz e Marina Helou.
> Cadastre-se e acesse de graça, por 30 dias, o melhor conteúdo político premium do país