A atriz Dina Sfat, um dos maiores talentos da teledramaturgia brasileira, foi também uma vigorosa combatente da ditadura militar e uma grande defensora da liberdade de imprensa. Viu amigos serem perseguidos, torturados ou mortos. Foi vítima da censura a filmes e peças de teatro em que atuou. Em julho de 1981 participou do programa Canal Livre, no qual o general Dilermando Monteiro, ex-comandante do II Exército, era o entrevistado. Passou a entrevista calada, com uma expressão apreensiva. Quando o apresentador lhe pediu que fizesse pelo menos uma pergunta, afirmou:
– Não quero perguntar. Eu tenho medo de generais.
Neste ano de 2018 os integrantes de uma geração que viveu os horrores dos anos de chumbo, que sofreu na pele a censura, a tortura, as execuções e os “desaparecimentos” de opositores do regime, de uma hora para outra começaram a ficar “falando de lado e olhando pro chão”. Para muitos, a ficha demorou, mas caiu. Estamos com medo.
Ao inimigo, nossos votos!
O pior é que o inimigo, desta vez, está sendo conduzido ao trono pela via democrática, por meio do voto popular, por sinal o mesmo processo que levou ao poder na Alemanha um militar e pintor frustrado, chamado Adolf Hitler, o capitão do Holocausto dos judeus na Segunda Guerra. E isso torna o inimigo de hoje um ser blindado contra qualquer acusação de tomada do poder pela força ou pelo golpe. Desta vez, é mesmo pelo voto. O processo é legítimo. As urnas são seguras, sim.
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Como ocorre às seitas religiosas, esportivas ou políticas, seus seguidores não raciocinam. Apenas seguem o líder, inebriados pelo messianismo que o torna infalível. Argumentos à razão nem arranham a convicção arraigada a ferro e fogo de que “ele” é o enviado que, de espada em punho, trará de volta a justiça aos ímpios, e a remissão aos pecadores. A crença cega e irredutível a qualquer apelo racional converte cada um de seus seguidores num multiplicador de sua mística. No alto do monte imaginário, o líder, cercado pela aura da infalibilidade, indica o caminho ao rebanho das ovelhas que, dóceis, caminham suavemente em direção ao matadouro.
Eu vejo o futuro repetir o passado
Quem viveu os tempos áridos da ditadura identifica com nitidez as características que tornam o futuro cópia autenticada de um passado que tinha tudo para nunca mais voltar. Mas que está voltando, desta vez “atendendo a pedidos”. A democracia, “plantinha frágil”, na definição de Octávio Mangabeira, vem se revelando de repente fragílima diante da possibilidade da chegada ao poder de um candidato que ainda outro dia, da tribuna do Parlamento, propunha… o fechamento do Congresso! E contra o qual a citação com provas de suas agressões a negros, gays e mulheres não surte qualquer efeito, apenas reforça a condição de messias (que coincidentemente carrega no próprio nome).
Quem o apoia e para ele queima incensos e eleva preces a um deus vingador se sente é vitorioso quando os adversários lançam sobre ele acusações de grosseria, racismo, homofobia e misoginia, entre outras. “Essa corja tem mesmo é que ser tratada na chibata”, pensam lá com os imaginários botões dourados dos dólmãs que sonham vestir um dia e com os quais participarão do grande desfile do exército dos justiceiros. Tal como se exibiam as legiões hitleristas, em ordem unida.
Gays aplaudindo a homofobia
Outro dia, um homossexual famoso em Brasília, cabeleireiro de personalidades ilustres, apareceu num vídeo do WhatsApp entoando loas ao líder da grande legião dos redentores da pátria. Será que ninguém disse a ele que o tal líder é homofóbico assumido? Os gays agem como nordestinos, que vêm se revelando fervorosos discípulos do líder, mesmo quando ele os trata na ponta do pé (ou seria da bota?). Muitas mulheres, que deveriam formar a grande legião de opositoras, na verdade vêm sendo seduzidas à sua passagem, e várias revelam sentir irresistível atração por ele.
Enquanto isso, as maiores vítimas da violência, nas favelas e nas regiões mais conflagradas pelo tóxico e pela exploração da pobreza, são as que mais celebram a chegada do ídolo que vingará seus opressores. Nem se lembram que a promessa de mais armas sempre significa e significará mais balas, mais terror, mais mortes. Mesmo os que comemoram a chegada de um salvador que tem um futuro ministro da Fazenda durão, que propõe corte drástico de gastos, se deram conta de que, para isso, serão os primeiros a perder seus empregos.
Pensar é muito, muito doloroso
Ainda assim, apenas seguem e obedecem. Porque não é preciso racionar; basta seguir. Sem questionar, sem refletir.
Até agora não apareceu um jornalista capaz de tirar da cara o sorriso benevolente e dizer baixinho, como Dina Sfat diria:
– Não quero perguntar. Porque eu tenho é medo. Porque sei como isso começa, mas não sei como termina.
Os que ainda estão acordados, como eu, andam calados, olhando pro chão.
(Desculpem o baixo astral desta coluna de hoje. Mas, como diria Winston Churchill aos soldados que se preparavam para morrer em combate, hoje só tenho a lhes oferecer sangue, suor e lágrimas).
Do mesmo autor:
Pra que título no celular, se o povo não souber a importância do voto?