O ano de 2013 teve mais do que ruas conflagradas, remexidas por um movimento difuso e ainda carente de explicações, digamos, definitivas.
O ano também trouxe um nome que entrou para a vida dos brasileiros, enquanto, paradoxalmente, era arrancado da convivência da família: o nome era o de Amarildo.
Negro, pobre, periférico, o ajudante de pedreiro teria se tornado só mais um número em relatórios do sistema de segurança pública do Rio de Janeiro, não fosse por um detalhe: Amarildo “sumiu” no seio da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, instrumento até então vitrine eleitoral e carro-chefe do governador de momento, Sérgio Cabral.
“Cadê o Amarildo?” virou grito de guerra ainda naquele caldeirão de 2013. Como as próprias jornadas, é questão ainda não inteiramente explicada à sociedade brasileira. É também o alicerce social em torno de livro de mesmo nome, que está sendo lançado pela Baioneta Editora : “Cadê o Amarildo?”, do sociólogo e jornalista Leandro Resende.
A obra nasce de dissertação de mestrado do autor, que é formado em jornalismo pela UFRJ e em ciências sociais pela FGV. Leandro teve o primeiro contato com o caso ainda como estagiário do jornal O Dia, também do Rio.
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Nas páginas do livro, o sociólogo trabalha o “antes, durante e depois” do caso, e esquadrinha os desdobramentos políticos e sociais deixados ao país e ao Estado brasileiro, que até hoje não encerrou o processo, tampouco indenizou a família. A obra expõe ainda a falência de um modelo de “segurança pública” que, para gente como Amarildo, nunca fez jus a essa nomenclatura, e parece deteriorar-se ainda mais neste 2019 árido, quando vem do próprio chefe do sistema a orientação de “mirar na cabecinha”.
Reflexões na entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, concedida por Leandro Resende.
Diante de tudo o que vivenciou da história que baseia o seu livro, começo te perguntando quem era Amarildo e que “riscos” ele representava para a sociedade, ou para o poder público?
Acho que existem no mínimo três Amarildos, que concorrem no imaginário carioca. O primeiro Amarildo é o homem pobre, irmão de doze, morador de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, e que construiu a sua vida com subempregos e bicos, para poder sustentar também uma grande família (Amarildo morreu deixando seis filhos).
Uma trajetória muito similar à de tantos brasileiros, de tantos moradores da favela da Rocinha. Construiu a sua vida ao lado de uma mulher nordestina (que veio para o Rio de Janeiro para ser empregada doméstica, também uma trajetória comum). Nesse sentido, Amarildo é um homem comum.
E aí, existem outros dois Amarildos, principalmente ao longo do período que eu analiso (entre julho e outubro de 2013). Dois Amarildos diferentes emergem a partir do momento em que ele desaparece pelas mãos do Estado: um, que vira bandeira de manifestações. Devemos lembrar que o Amarildo some um mês depois, no mês do rescaldo das jornadas de junho de 2013, momento em que a violência que é cotidianamente sentida na favela passa a ser partilhada pelo asfalto, com uma diferenciação importante, e isso apareceu até em cartazes: as balas que voavam no asfalto eram de borracha e as balas que voam na favela desde sempre são de verdade.
Era um momento em que a violência policial no Rio de Janeiro estava em discussão, e o Amarildo vira um grande símbolo de uma luta contra isso. Óbvio que essa bandeira é construída e potencializada pela família, mas se converte numa demanda pública. Ao mesmo tempo, e aí entra na questão do risco, cria-se na sociedade, de uma forma geral, que o Amarildo era traficante (o “terceiro Amarildo”).
Isso tem uma dupla serventia. Primeiro: um negro, morador de favela e pobre, é associado ao crime desde sempre. É um pouco do nosso Estado racista, que a gente tem aqui no Brasil. E em segundo lugar, aí entra novamente o risco [para o sistema]: o Amarildo começa a ser usado como um evento-símbolo, mobilizado para desmoralizar o programa de pacificação das favelas cariocas. Amarildo era um risco para a propalada estabilidade do programa, iniciado em 2008 com amplo respaldo da opinião pública.
A promessa de uma nova polícia mostra-se inviável de forma definitiva quando Amarildo desaparece, e, depois se descobre, é torturado e morto por PMs. Se foi um perigo, foi no sentido de ser um caso que se cristalizou a ponto de macular a imagem de um programa que era fundamental para o governo de Sérgio Cabral, e que lhe trouxe dividendos eleitorais substantivos.
Como você se aproximou dessa história?
Em 2013, eu estava nas ruas. Primeiro, como curioso naquelas jornadas. E nelas segui, quando entrei para o Jornal O Dia. Foi de dentro da redação que comecei a ver a repercussão do episódio. Fiquei impactado quando vi, perto da minha casa, na zona sul do Rio, uma pichação gigante, com a frase “Cadê o Amarildo?”, que se tornou bordão daquela época. À época, eu cursava Ciências Sociais, e foi graças a uma disciplina sobre a história do autoritarismo no Brasil que percebi permanências do país de outrora naquele caso. E daí, partiram as reflexões dos últimos anos, que culminam no livro.
Você esteve próximo da família de Amarildo. Gostaria que relatasse um pouco de como foram esses contatos e conversas com familiares e pessoas próximas dele. De que maneira se manifestavam a respeito desse conjunto de violações sofrida exatamente das mãos daqueles que deveriam protegê-los?
Minha proximidade com a família de Amarildo é relativa. Cruzei com eles em alguns momentos do caso, porque meu olhar de sociólogo, por vezes, confundiu-se com o de jornalista. Em miúdos, tive o caso como pauta, enquanto esse era meu objeto de reflexão sociológica. Sobre a família de Amarildo, posso falar duas coisas que julgo relevantes: no momento mais importante do caso, foi graças à denúncia por eles mobilizada que se chegou à repercussão fundamental para que o caso fosse esclarecido. E hoje, seis anos depois, o Estado ainda não pagou a indenização que deve à família. É mais uma das muitas mortes do pedreiro ao longo dos anos. Essa, talvez, a mais drástica, porque é o mínimo de reparação, que não foi garantido àquelas pessoas.
Em sua abordagem você se propõe a arrancar o caso Amarildo da esfera particular e escancará-lo como uma controvérsia pública, reveladora da nossa realidade social. Que realidade é essa, enfrentada por pessoas como Amarildo?
O escritor Alberto Mussa faz uma sugestão, em uma coletânea de crônicas, da qual tenho me apropriado para falar sobre o sumiço de Amarildo. Histórias podem ser versões de outras já contadas. No limite, Amarildo é uma versão (trágica e cruel) da história da gestão da vida e da morte empreendida pelo Estado brasileiro desde que esse existe como tal. Favelado, negro e pobre. É estigmatizado três vezes, alvo três vezes. Por suas nuances, o caso transbordou: foi bandeira de protestos, ponto de virada na história da política da pacificação, referência para investigadores e vítimas de arbítrio, em uma multiplicidade de sentidos intrigante, e, por isso, merecedora de reflexões.
O livro coloca em xeque a política de segurança pública, notadamente o instrumento das UPPs. Que erros o Estado brasileiro cometeu ali e continua cometendo ao lidar com as periferias?
A UPP foi pensada para atender o corredor turístico e econômico da capital fluminense, tendo em vista os megaeventos de 2014 e 2016. Fez-se sobre ela muita propaganda, e, por isso, gerou-se muita expectativa. Sua derrocada veio com o caso Amarildo, de um ponto de vista simbólico: da perda de confiança que aquela violência ensejou. Mas começa a ruir desde 2010, quando Sérgio Cabral promete levar UPPs para todas as favelas do Rio de Janeiro. Quando sobrevaloriza os crimes contra a vida na capital, em detrimento de outras áreas. Quando finge não perceber a migração de criminosos para outros estados brasileiros.
Os erros do projeto são vários, vêm desde sua origem. Mas, sublinho: vendeu-se que a simples entrada da polícia resolveria a vida de quem mora nas favelas. E ninguém pensou no fato de que na Rocinha, por exemplo, há lugares (muitos) em que há esgoto a céu aberto. Não há mobilidade urbana, espaços de lazer; educação, saúde. A UPP iludiu, e não colocou em xeque a ideia da guerra, que há décadas permeia a história do Rio de Janeiro no trato com os pobres. O Estado continua entrando apenas com tiros e bombas (agora, vêm também pelo céu, com a participação do próprio governador, como caso recente revelou).
Ainda nesse cenário de gestão pública de segurança, como avalia a atuação do governador Wilson Witzel? Que sinais as condutas e declarações dele passam à sociedade em geral e à população periférica em particular?
O começo de mandato de Wilson Witzel remete aos primeiros dias de governo Sérgio Cabral, em 2007, quando a aposta se deu sobre mega-operações em favelas como combate à criminalidade. Witzel estica essa retórica com o propalado “mirar na cabecinha”, defendido e celebrado ao longo da campanha eleitoral. É um artifício. Nada além, não traz nada de novo. Trata-se de um governador performático, que, vira e mexe, posa com fuzis apreendidos pelas forças policiais, que defende a execução de pessoas, mas que se silencia por dias, como no caso do músico Evaldo, alvo de mais de 80 tiros em Guadalupe. O problema do Rio de Janeiro é muito complexo, e não será resolvido por bravatas. O recado que fica para quem mora na periferia é o pior possível, mas não é nada de novo no front. Seguirão na primeira linha de tiro. Seguirão alvos do arbítrio estatal.
O que une o caso de Amarildo e a execução da vereadora Marielle Franco?
São casos emblemáticos, e que não se esgotam com seus esclarecimentos (saliento que o caso da Marielle sequer foi esclarecido totalmente). Se o de Amarildo é um marco na história das UPPs, o da vereadora carioca é um episódio paradigmático na história da intervenção federal. O então ministro Carlos Marun fez uma fala logo após a morte de Marielle, dizendo que não permitiria que a morte dela fosse um “caso Amarildo, episódio que desmoralizou as UPPs”. Esses casos se conectam na retórica dos poderosos. Repercutem nas vidas da famílias dilaceradas, mas não se esgotam no seio da dor familiar, porque ensejam dúvidas sobre as responsabilidades. São mortes que ocorrem e se repetem: negros e favelados, Marielle e Amarildo foram associados ao crime, como se isso legitimasse suas mortes, ou as tornasse inevitáveis.
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