João Capiberibe *
Um Estado que cultua a violência incapacita-se a construir uma sociedade pacífica e democrática. Não vou teorizar, direi o que penso a partir de uma diversificada experiência como preso político, exilado, prefeito, governador e senador da República. Junte-se a isso minha absoluta independência de interesses corporativos ou privados.
Os Estados Nacionais, ao contrário do que alguns pregam, funcionam como faróis das sociedades. Pelos meios de que dispõem, tornam-se vanguarda em vários campos das atividades humanas. Para corroborar a tese, cito o Estado Brasileiro, que sustenta uma rede de consulados e embaixadas ao redor do mundo a serviço dos seus interesses.
Pergunto, quantos empreendimentos privados custeariam algo semelhante? Poucos. Olhemos a desenvoltura do Itamaraty, por onde andei nos anos de exílio. Sempre por perto, nem sempre amigável, às vezes até hostil, mas próximo, reunindo informações de ponta sobre política, economia, ciência e tecnologia de interesse do governo e da sociedade brasileira.
Mas, toda vez que o Estado lança mão da violência como instrumento de persuasão política espalha o terror na sociedade. Como um rastilho de pólvora fomenta a disputa de quem mata mais.
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Para estancar essa escalada é preciso ampliar o conceito de segurança pública, preparando seus agentes para o exercício de funções dentro de uma nova filosofia, tornando-os avalista do pleno exercício da cidadania, dos direitos humanos e da segurança de todos.
PublicidadeParece utopia. Sim, parece. Afinal, o Brasil ostenta uma taxa de 32,4 homicídios por cada 100 mil habitantes. Índice quase cinco vezes a média mundial de 6,7 e nove vezes a média do grupo de países ricos de 3,8. Relatório da Organização Mundial de Saúde aponta que houve 64.357 assassinatos no Brasil em 2012. Uma guerra não declarada.
Para pacificar a sociedade é preciso conter a violência do Estado e isso não se faz em um passe de mágica. É preciso arriscar numa direção. O que não pode é continuarmos tergiversando, patéticos e imobilizados, coonestando com a brutalidade diária, pois isso nos torna cúmplices e omissos.
Para entender o presente é preciso ir à origem da cultura de violência, que o país consolidou ao longo de sua história.
Para facilitar a compreensão, limitar-me-ei a dois exemplos suficientes para demonstrar as imbricações entre passado e presente.
Na ditadura, Rubens Paiva teve seu dia trágico e até hoje de seu corpo não se tem notícias.
Na democracia, Amarildo Dias de Sousa teve o mesmo destino e de seu corpo não se tem notícias.
Cenas de ontem e de hoje. Isso me faz pensar que os sequestradores de Amarildo se inspiraram em exemplos do passado.
Dois crimes hediondos contra a humanidade, semelhantes com motivações diferentes, mas de consequências exatamente iguais: tortura e morte, nos dois casos praticados por agentes do Estado.
A pergunta que não quer calar: se punidos fossem os torturadores e assassinos de Rubens Paiva, Amarildo estaria vivo?
A resposta é sim. Amarildo estaria vivo. Pelo menos é o que se deduz, se considerarmos o que foi feito em países vizinhos.
Argentinos, chilenos e uruguaios viveram experiências como a nossa, de ditaduras com milhares de assassinados e desaparecidos, mas se acertaram com seus passados de horrores e puniram exemplarmente assassinos e torturadores.
Hoje, esses três países ostentam indicadores de violência que os aproximam dos países ricos, segundo o Estudo Global sobre Homicídios de 2013, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC).
A busca de uma cultura de paz impõe a retirada do caminho do primeiro obstáculo, o dispositivo da Lei 6.683/1979, a Lei da Anistia, que é na verdade uma imposição conjuntural que permanece até hoje. Como se fosse cláusula pétrea, protegendo os que na ditadura praticaram crimes contra a Humanidade, instituindo em nome do Estado a cultura da violência, que atravessa o tempo chegando aos nossos dias.
* João Capiberibe é senador pelo PSB do Amapá.