Nesta quarta-feira, 20 de fevereiro, comemora-se o Dia Mundial da Justiça Social, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007. Trata-se de uma excelente oportunidade para refletirmos sobre a luta contra a pobreza, a exclusão, o preconceito e o desemprego.
A justiça social está no cerne da Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável. De maneira geral, podemos dizer que a erradicação da pobreza e o fim da fome são questões de justiça social, assim como a saúde e o bem-estar da população, a educação de qualidade, a igualdade de gênero, o acesso à Justiça, e assim por diante.
Mas, será que o Brasil tem algo a celebrar? Infelizmente, não. E, apesar de não ser uma novidade afirmar que nos últimos anos testemunhamos uma série de retrocessos no campo do desenvolvimento social que se intensificaram neste início de 2019, é importante insistir na afirmação de que é obrigação e responsabilidade dos três poderes – do Executivo, do Legislativo e do Judiciário – de, articuladamente, reverterem o quadro atual.
O Relatório Luz 2018, documento que analisa a implementação da Agenda 2030, já mostrava que o Brasil dificilmente cumpriria os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A redução de programas sociais e de transferência de renda, a limitação dos gastos públicos, a MP da Grilagem, a reforma trabalhista, o aumento do desemprego, entre tantos outros problemas, indicavam que o gigante estava, de fato, dormindo, ficando para trás. Mas era difícil imaginar que a situação se deterioraria de forma tão grave.
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O quadro atual é muito mais preocupante. Dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, mostram que o Brasil fechou 2018 com taxa de desocupação de 12,7% e 12,8 milhões de desempregados, com a informalidade atingindo novo nível recorde. E, para quem vive em situação de pobreza, está difícil manter a esperança: são 54,8 milhões (26,5%) vivendo com menos de R$ 406 (US$ 5,5/dia) por mês, número que chega a 25,5 milhões no Nordeste (44,8%). Mulheres pretas ou pardas constituem o grupo mais vulnerável e a situação delas tende a se agravar com medidas como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a transferência da demarcação de terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura. Enquanto raposas cuidam do galinheiro, o Brasil fica cada vez mais perto de voltar ao Mapa da Fome.
Os dados mostram que a vulnerabilidade à fome e a extrema pobreza andam de mãos dadas, condição que se agrava quando direitos sociais são suprimidos e o Estado se omite em garantir proteção social aos grupos mais vulneráveis, em especial mulheres negras, quilombolas e indígenas. E é neste contexto que, por exemplo, 10% da população brasileira concentram quase metade da renda do Brasil, sem que projetos como os da tributação de grandes fortunas avancem. Não é possível que o país siga inerte enquanto aprofunda-se o abismo social entre ricos e pobres, enquanto as prioridades do recém-eleito governo federal alimentam e fortalecem uma cultura de exclusão baseada em raça, gênero e orientação sexual.
Outro indicador estruturante para a justiça social em pleno colapso é a existência de sociedades pacíficas, com baixo nível de violência e de impunidade e acesso equitativo à justiça para todas as pessoas. Mas, na área da segurança, por exemplo, o projeto de lei anticrime (como se houvesse alguma lei favorável a crimes) recém-proposto pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, propõe medidas que aumentam a violência policial – a tal licença para matar dada a policiais –, geram encarceramento em massa e impõem técnicas autoritárias de investigação.
Não apenas isso. O projeto também aumenta o risco de criminalização dos movimentos sociais e sindicatos, entidades historicamente responsáveis pela idealização de políticas e programas voltados à justiça social e que, em seu dia-a-dia, beneficiam na ponta milhares de pessoas que as atuais políticas negligenciam. É de se questionar se Moro achou tímida a Medida Provisória 870/2019 que, entre outros retrocessos e inconstitucionalmente, coloca os organismos internacionais e as organizações não governamentais sob monitoramento da Secretaria de Governo.
Finalmente, e não menos importante, é o absurdo que representa o Decreto nº 9.685/2019, que flexibilizou a posse de armas e dificultará, e muito, a promoção de sociedades pacíficas e inclusivas, demonstrando que o governo federal repassou aos brasileiros a responsabilidade de defenderem-se a si mesmos, algo incompatível com as obrigações do que entendemos como Estado de direito – seja ele mínimo ou não. O arremate, para inviabilização do alcance do ODS 16 veio com as mudanças na Lei de Acesso à Informação que, sob a justificativa de diminuir burocracia, permitem que servidores comissionados classifiquem informações como secretas ou ultrassecretas, na verdade configuram um ataque à transparência e à democracia.
Num contexto tão turbulento, talvez nunca tenha sido tão importante para cada um de nós, brasileiros e brasileiras, perguntarmos que tipo de sociedade queremos para o presente – mal completamos dois meses do novo governo – e para o futuro. Achamos mesmo que a justiça social é importante para o Brasil? Ou apenas queremos que o circo pegue fogo, não importando quem esteja no picadeiro para nos entreter? O dia 20 de fevereiro é uma ótima oportunidade para refletirmos sobre essas questões.
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