O número de eleitas na Câmara dos Deputados saltou de 77 deputadas federais em 2018, para 91 em 2022. Ainda estamos muito longe da paridade de gênero. As deputadas representam pouco menos de 18% dos parlamentares eleitos. Mas é possível enxergar um pequeno avanço na representatividade. Afinal, temos duas mulheres trans na Casa – Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). Apesar disso, a pauta antifeminista tem alcançado cada vez mais espaço por conta da composição da bancada feminina, com nomes fortes do conservadorismo cristão e do bolsonarismo.
Como mostrou recentemente o jornal Folha de S.Paulo, as deputadas conservadoras mobilizam o plenário e a pauta com temas como a criminalização total do aborto, mesmo nos que já são previstos em lei (gravidez resultante de estupro, risco para a mãe ou anencefalia do feto), defendem a separação de alunos com deficiência dos demais, querem a população armada, trabalham para impedir direitos da comunidade LGBTQIA+, entre outros temas. Nas redes sociais, se apresentam como “cristãs”, “servas de Deus”, “pró-vida” e “pró-família”, e usam o fato de serem “esposas e mães” como ponto político para atacar o feminismo.
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Esquecem-se que foi graças à luta de mulheres anteriores a nós que hoje podemos votar e nos candidatar a cargos no Executivo e no Legislativo, entre tantas outras conquistas. Ou que a luta feminista permitiu a criação de creches e espaços infantis para que as mulheres possam deixar seus filhos enquanto trabalham. É como se essas coisas sempre tivessem existido e não foram resultado de muita luta e reivindicação. Dói ver essas mulheres, representantes do Legislativo, reforçando conceitos do patriarcado. Mas também dói saber que elas ocuparam um espaço deixado pela esquerda progressista e feminista (salvo poucas honrosas exceções), que há muito se afastou da população esquecida pelo poder público e que hoje lota as igrejas.
No final dos anos 1970, a Igreja Católica tinha forte atuação sociopolítica e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) estavam presentes nas periferias do Brasil. Graças às CEBs, mulheres das camadas mais pobres da população puderam ter contato com a noção de direitos, inclusive os reprodutivos, e encampar uma luta que pôde ser chamada de feminista. E, claro, esses grupos católicos também tiveram papel preponderante na criação do Partido dos Trabalhadores (PT), ainda o maior representante da chamada esquerda política brasileira.
Ok, o mundo deu várias voltas e a Igreja Católica mudou de perfil. E o PT foi se afastando dos grupos religiosos, assim como a esquerda feminista (de novo, salvo honrosas exceções). Hoje, são as igrejas evangélicas que têm protagonismo nas periferias esquecidas pelo poder público. E, sim, mesmo com discurso conservador e antifeminista, são essas igrejas que servem como rede de apoio para as mulheres que congregam nesses espaços religiosos. E, sim, as mulheres evangélicas são estigmatizadas por uma esquerda feminista cada vez mais elitizada e que torce o nariz para pessoas que defendem seu credo religioso.
Espaço largado é espaço ocupado. Como pontuou meu colega de Observatório Evangélico Juliano Spyer em seu livro O Povo de Deus – Quem são os evangélicos e por que eles importam: com dificuldades de acessar os serviços públicos, os fiéis recebem apoio das igrejas que frequentam, que funcionam como Estado de bem-estar social informal ocupando espaços abandonados pelo poder público.
PublicidadeNesse imenso vácuo, as parlamentares conservadoras e suas pautas de pânico moral vão abraçando quem é deixado pelo caminho, principalmente as mulheres que são o elo mais fraco dessa corrente. Mulheres essas que não se sentem representadas por uma esquerda feminista que tem enorme preguiça em defender e explicar suas bandeiras com ênfase e didatismo, considerando que quem é contrário ou que não entende seus pleitos nem deve ser levado em conta. Se a situação permanecer assim, vamos continuar a perder feio!
* Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.
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