O Projeto de Lei 198/2015 prevê a criminalização da transmissão deliberada do vírus da aids, reapresentando uma proposição já arquivada que datava de 1999. Além de ter sido equivocado ainda naquela época, desde então várias realidades acerca da epidemia do HIV e aids mudaram muito. Quando o autor do atual projeto afirma que “a aids ainda é incurável e mata com o decorrer do tempo”, está disseminando desnecessariamente o medo acerca da infecção pelo HIV, porque não faz a distinção entre ter a infecção pelo vírus e ser doente de aids.
A pessoa infectada pelo HIV somente chega a ter aids se ela não fizer o diagnóstico oportunamente e se não fizer adesão ao tratamento antirretroviral. A pessoa com HIV em tratamento regular na maioria das vezes tem sobrevida igual a uma pessoa sem infecção. Mais importante ainda, já está cientificamente comprovado que com o tratamento ininterrupto, a carga viral do HIV da pessoa infectada se torna suprimida, o que impede em 93% a transmissão do vírus para outra pessoa, mesmo se não forem tomadas as “precauções necessárias para evitar o contágio”.
Aliás, para ter uma relação sexual, precisa – minimamente – de duas pessoas. Ainda, supõe-se que estejamos falando de pessoas consentidas, uma vez que o projeto de lei não faz menção de violação ou estupro. O foco não deve estar somente na responsabilidade da pessoa que saiba que tem HIV, como também na responsabilidade das demais pessoas envolvidas. Em tempos de HIV/aids, todas as pessoas devem tomar precauções para evitar a infecção, até porque segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil tem 827 mil pessoas vivendo com HIV, sendo que 112 mil (13,5%) destas não sabem que são infectadas.
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A possibilidade de ser infectada sexualmente pelo HIV vai muito além do cenário simplista apresentado pelo projeto de lei que cria de um lado a figura do culpado (a pessoa que sabe que tem HIV), e vítima, do outro. Por que criminalizar a pessoa com HIV, quando todos/as têm os meios à disposição para se proteger e evitar a transmissão, e nem todos/as sabem se têm o vírus ou não?
O projeto de lei também vem na contramão de alguns princípios do partido político dos seus dois proponentes. Entre seus princípios e definições, o Manifesto do Partido Democrático Trabalhista anuncia que “proclama, afirma e defende” os direitos democráticos e sociais, entre os quais se destacam neste caso “o direito de viver em liberdade e sem medo…” e “o direito de abominar e combater a doutrina e práticas que discriminem brasileiros e demais habitantes do país… ou ainda que conduzam ao desrespeito de sua dignidade ou que suprimam ou restrinjam seus direitos humanos…”. O projeto de lei pretende amedrontar e também promove a discriminação e o desrespeito à dignidade das pessoas vivendo com HIV, transformando-as em criminosas em potencial.O mesmo Congresso Nacional aprovou, isto sim dentro do espírito do Manifesto do PDT, a Lei nº 12.984/2014, que define o crime de discriminação contra os portadores do HIV e doentes de aids, inclusive o ato de “divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de aids, com intuito de ofender-lhe a dignidade”, o que certamente ocorreria se o P/L 198/2015 vier a ser aprovado.
Se o Congresso Nacional realmente quer contribuir para o enfrentamento do HIV e da aids, em vez de propor a criminalização de pessoas que transmitem sabidamente o vírus para outros – o que já se enquadra nas disposições do Código Penal –, teria maior impacto se apoiasse a prevenção e a promoção da saúde. Por meio da testagem voluntária regular para o HIV pelas pessoas sexualmente ativas, com incentivo prático à adesão ao tratamento e retenção nos serviços de saúde daqueles com resultado reagente, com investimentos nos serviços de saúde e divulgação e disponibilização dos meios de prevenção, incentivando as pessoas a se prevenirem e a terem autonomia para tomar atitudes de cuidado de si mesmas e de outrem.
Baseado ainda nos princípios e diretrizes da Lei do Sistema Único de Saúde (8080/1990), quando colocam que as ações de serviços de saúde devem ser desenvolvidos mediantes a “utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática” e a (…) “participação da comunidade”. Desta forma, contribuiria para o alcance pelo Brasil das metas “90-90-90” das Nações Unidas: 90% das pessoas com HIV diagnosticadas; 90% destas em tratamento; e 90% destas com supressão viral até 2020, rumo ao fim da aids enquanto epidemia até 2030, no âmbito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.