Leonardo Coelho, especial para o Congresso em Foco
Josiane França, modelo gaúcha de 43 anos, é uma mulher autônoma que mora com o marido em Porto Alegre (RS). A vida do casal, mesmo durante a pandemia, tem sido como a de tantos outros, com pequenas conquistas e perrengues. No cotidiano deles há, porém, alguns desafios muito peculiares que precisam lidar que vão além da normalidade.
“Quando eu estava precisando baixar minha carteira de trabalho em um aplicativo de celular, apareceu um daqueles desafios para provar que eu não sou uma máquina. Eu precisava marcar as imagens que continham um desenho de fogo”, lembra a modelo, que não conseguiu completar tal processo de checagem devido ao fato de não enxergar há mais de 13 anos, assim como meio milhão de brasileiros segundo dados do IBGE de 2010.
A situação, entretanto, não melhorou quando ela escolheu que o desafio, chamado popularmente de captcha, fosse feito por áudio.
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“Falaram três palavras em inglês que eu nunca tinha ouvido. Eu tentei mudar as configurações para português e mesmo assim ficou em inglês. Desisti porque não falo outra língua”, relembra Josi, que faz parte do Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e com Baixa Visão.
A gaúcha até tentou pedir a ajuda de uma vizinha que enxerga normalmente, sem sucesso. Situação essa que deixou Josiane com medo. Além de ter que expor seus dados pessoais como CPF e RG, ela também se preocupa com a necessidade de se expor à contaminação por coronavírus para pedir ajuda em meio ao aumento do número de casos e do colapso dos sistemas de saúde. Seu estado, o Rio Grande do Sul, vem há semanas apresentando alta no número de internações e de óbitos.
Publicidade“São várias coisas que nos atingem, nos implicam, e que nos deixam vulneráveis enquanto cegos. A gente tem que confiar. Tu não tens medo? Tenho, mas eu sou obrigada a confiar. Meus parentes tão longe, não dá para chamar eles para virem, ainda mais com covid por aí”.
Exclusão de serviços públicos
Sua colega de movimento, Priscilla Dantas, estudante de 34 anos de Salvador, Bahia, viveu algo semelhante com o mesmo aplicativo, também recebendo áudios em inglês. “O captcha é sempre um empecilho para nós cegos. E o dia que eu não tiver um vidente perto? Eu não quero ter que depender de ninguém”. Segundo ela a dificuldade também se repetiu em outro aplicativo do Governo Federal, o Cadastro Único.
O aplicativo Carteira de Trabalho Digital, disponível tanto para Android quanto IPhone, por sua vez, foi desenvolvido pelo Dataprev, empresa pública brasileira que é vinculada ao Ministério da Economia.
Essa dificuldade pela qual passaram Josiane e Priscilla não é desconhecida por outros na comunidade e por especialistas em acessibilidade. Desafios auditivos difíceis, incompreensíveis e até em outras línguas acabam sendo encontrados em outros serviços digitais públicos que, na teoria, deveriam ser exemplos de acesso democratizado.
Segundo o Modelo de Acessibilidade em Governo Eletrônico, chamado de eMAG, os captchas são dispositivos utilizados para impedir que softwares automatizados, conhecidos como bots, executem ações que degradem a qualidade do serviço de um sistema.
Criado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão através da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação em 2014, o documento foi atualizado no fim do ano passado. Este deixa claro que o recurso captcha não é indicado para uso nas plataformas do governo, especialmente em formulários (Recomendação 6.8). Em troca, sugere-se o uso de outras soluções, como limite de conexão, monitoramento e consistências nas políticas de segurança.
“Algumas práticas, apesar de comuns, configuram-se não só como empecilhos para o acesso de pessoas com deficiência, mas também, o acesso por dispositivos móveis”, explica o material. Essa diretriz está norteada nas avaliações da W3C, um consórcio de âmbito internacional com a finalidade de desenvolver especificações, guias e ferramentas para Web.
A Secretaria de Governo Digital, vinculada ao Ministério da Economia, comentou que “o eMAG segue os padrões internacionais e orienta os profissionais responsáveis pela publicação de informações, ou aqueles que desenvolvam serviços digitais e façam alterações/adequações nas páginas on-line, para que as tornem acessíveis ao maior número possível de pessoas, incluindo as pessoas com deficiência”.
A reportagem encontrou o uso de captcha que podem ser de difícil acessibilidade também nas duas casas do Congresso Nacional; a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Em ambas, o teste era usado justamente nos formulários de login, a porta de entrada do sistema onde se cria um cadastro para uso ativo dos usuários. Apenas através de uma conta vinculada ao CPF da pessoa que se pode votar em projetos legislativos, propor novas leis, responder enquetes e outras funcionalidades básicas para o exercício da cidadania.
Áudios com chiado, duração ínfima e sons que são impossíveis de decifrar são alguns dos problemas aferidos pela reportagem quando testou os captchas auditivos. Outros eram compreensíveis, porém pediam para ou escrever uma palavra em inglês ou uma tradução de uma palavra do português para inglês. “Menina em inglês”, dizia um áudio, criado pelo sistema reCAPTCHA (versão 2), que é uma versão do captcha de propriedade da empresa de tecnologia Google. Outro, por sua vez, pedia para traduzir para o inglês a palavra negócios (business).
“Você acaba elitizando a utilização do recurso para quem aprendeu outra língua”, reflete o professor Wagner Maia, criador do Portal da Deficiência Visual, pontuando que isso não é cobrado das pessoas que enxergam.
O reCAPTCHA, produto da Google, é um dos líderes do segmento desse tipo de recurso. O Congresso em Foco compartilhou com a empresa de tecnologia as preocupações da comunidade cega.
Em nota ao Congresso em Foco, a Google afirmou que desenvolveu uma nova versão do produto que não requer nenhuma interação direta com o usuário, o reCAPTCHA V3. A empresa adicionou também que faz “parcerias com as comunidades para aprender em primeira mão quais são seus desafios e como podemos ser mais úteis para eles, seja por meio da criação de novos produtos ou da melhoria dos existentes.”
A Câmara dos Deputados, por sua vez, disse estar ciente das limitações do captcha, explicando que não pode ser desativado no momento porque este é utilizado para coibir o acesso de robôs às páginas e serviços de interação e participação. “Para sanar as limitações de acessibilidade um grupo técnico da Diretoria de Inovação e Tecnologia da Informação (Ditec) da Casa discute alternativas técnicas viáveis que atendam, simultaneamente, os critérios de acessibilidade e segurança digitais. A expectativa é que se encontre uma solução definitiva nos próximos meses”.
Já o Senado Federal, através de sua assessoria, corroborou que o uso do recurso é uma validação de segurança e que a casa faz esforços extensos para evitar fraudes e manipulações. “O preenchimento [do login] foi testado pela equipe responsável com o leitor de tela NVDA, correntemente em uso pelo público por pessoas com deficiência visual e funcionou sem problemas”. O Senado disse que sua ouvidoria está aberta para críticas, reclamações e dúvidas sobre acessibilidade.
Experiência de um deputado cego
O Deputado Federal pelo Espírito Santo, Felipe Rigoni (PSB), primeiro parlamentar cego no Congresso, compartilhou que já passou por dificuldades semelhantes em outros locais, mas que não estava ciente dessa situação específica nos sites do legislativo federal. Para ele, as casas precisam rever esse quadro uma vez que não se faz democracia sem saber como as pessoas pensam e se posicionam.
“Quanto mais essa participação popular acontecer nos sites do Congresso melhor”, comentou o deputado, afirmando que vai tomar ações com relação a essa questão. “Senão se promove a exclusão”.
Outros site importante, o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos, o Cebraspe, sequer tem o desafio auditivo, ao menos na página de acompanhamento.
Caso alguém com deficiência visual queira se inscrever nos diversos concursos, seleções e avaliações promovidos pela Organização Social (OS) é praticamente obrigatório a ajuda de um vidente, ferindo a autonomia das pessoas com deficiência visual.
O Cebraspe foi procurado pela reportagem, respondendo que está empenhando todos os esforços no sentido de incluir em seu sítio eletrônico informações sobre o procedimento para inscrição de pessoas com deficiência visual.
“Como prova de nosso compromisso com a acessibilidade, ressaltamos que contratamos uma consultoria especializada no assunto a fim de que fossem verificados todos os requisitos para que o portal esteja plenamente adaptado. Este trabalho foi validado junto às pessoas com deficiência e está em execução atualmente”.
Daniela Tavares, servidora com deficiência visual e Coordenadora do Projeto de Pesquisa e Elaboração de Comunicações Acessíveis (Projeto ComAcess NCE/UFRJ), avalia que apesar dos avanços ainda há um longo caminho a percorrer para promover a inclusão digital desse público.
A pesquisadora destaca que as discussões sobre a acessibilidade digital começam a partir da década de 1990 e lembra que os primeiros captchas tinham mais problemas dos que os atuais. Daniela também aponta que a falta de dados detalhados sobre a população brasileira com deficiência dificulta a adoção de estratégias para o desenvolvimento de sites acessíveis pelas empresas.
“Acredito que a adoção de estratégias adequadas pode tornar os captchas também acessíveis nos sites para que não seja necessário solicitar a ajuda de uma outra pessoa para ler a informação presente na tela é importante. Mas, será que as empresas conhecem o quantitativo de pessoas com deficiência visual que navegam diariamente na internet para estudar, comprar etc.?” questiona.
O Brasil, segundo o IBGE, tem quase 6 milhões de pessoas com algum nível de perda visual, que é um público distinto daqueles de pessoas cegas. Recentemente foi encaminhado para sanção presidencial o PL que classifica visão monocular como deficiência visual.
O Movimento Web para Todos acompanha essa discussão há anos e quantifica anualmente a situação da acessibilidade na web brasileira. Suzeli Damaceno, coordenadora do Movimento, corroborou que a situação ainda tem muitos aspectos negativos, mas ao menos no que tange a sites governamentais, a situação melhorou, demonstrando algum interesse em evoluir. Sites governamentais chamados de “nota dez” mais que duplicaram no período de um ano entre 2019 e 2020.
“Essa barreira dos captchas ainda é uma das mais comuns, e ela é ruim tanto para as pessoas cegas quanto para quem enxerga”, comenta Suzeli, apontando também que há outras questões importantes para acessibilidade, como a falta de descrição adequada em links, formulários malfeitos e a ausência generalizada de descrição das imagens, o chamado alt-text.
“Quase 84% dos sites analisados têm problemas de não ter esse texto alternativo para as imagens, que muitas vezes são imprescindíveis para se entender o contexto de um conteúdo”.
O professor Wagner Maia, que há anos milita na área, percebe que, no que tange a legislação, boa parte da estrutura de leis de proteção já existe, faltando que estas sejam cumpridas. “Ela existe em tese, mas mesmo no governo não se cumpre”, critica, abarcando também os órgãos fiscalizadores, como os Ministérios Públicos Federal e Estaduais que, segundo Wagner, não agem, afirmando que só agiriam ‘por provocação’. “Estamos cansados de reclamar nos MPs e não dar em nada”.