Daniela Gonçalves de Carvalho *
Em 27 de novembro, o presidente da República, Michel Temer, instituiu por decreto o Plano Nacional de Combate à Violência Doméstica e o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres, que teve ampla participação da Secretaria de Direitos Humanos. Assinaram o decreto de criação o presidente da República, o ministro dos Direitos Humanos, Gustavo Rocha, e o ícone nacional símbolo da luta contra a violência doméstica, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes. O objetivo é ampliar a rede de proteção em favor da mulher e aumentar as políticas sociais de inclusão feminina nos diversos segmentos sociais [1].
O tema que despontou no Planalto há muito assola diversos lares brasileiros, vem ganhando maior divulgação na imprensa, e é parte da luta diária de advogados públicos federais, por meio das chamadas ações regressivas.
Esse instrumento teve divulgação maior no caso do juiz condenado a ressarcir a União em ação de danos morais por ofender autor de ação que chegou usando chinelos [2] e na ação regressiva pela autarquia previdenciária com o objetivo de ressarcimento de valores pagos, a título de pensão, por morte aos filhos de segurada da Previdência Social, vítima de homicídio praticado por seu ex-companheiro [3]. Neste espaço destacaremos o segundo episódio, apresentando ao leitor o funcionamento das ações regressivas.
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A ação regressiva é o instrumento processual por meio do qual a Fazenda Pública busca o ressarcimento de despesas determinadas pela ocorrência de atos ilícitos. A previsão legal está na Constituição, em seu artigo 37, parágrafos 4º e 5º, vejamos:
- 4º – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
- 5º – A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
Note-se que as ações de ressarcimento não possuem prazo prescricional para o seu ajuizamento, essa a interpretação que a doutrina majoritária confere ao artigo 37, parágrafo 5º. O Informativo 596 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) trouxe um caso que chamou a atenção: beneficiários da pensão por morte de uma segurada assassinada pelo ex-companheiro trazem inegável despesa aos cofres públicos. Não fosse seu assassinato, a Fazenda não teria tal despesa, por isso, legítima a cobrança do autor do fato de tais despesas.
PublicidadeVeja-se a ementa: “É possível o ajuizamento de ação regressiva pela autarquia previdenciária com o objetivo de ressarcimento de valores pagos a título de pensão por morte aos filhos de segurada, vítima de homicídio praticado por seu ex-companheiro”.
As ações regressivas constituem objeto de trabalho e orgulho no âmbito da Procuradoria Geral Federal, órgão vinculado à Advocacia-Geral da União (AGU), que representa as autarquias e fundações públicas federais. Além do viés patrimonial em ressarcir-se o Erário, tem-se o caráter pedagógico com o fim de reprovar condutas não virtuosas (como de empregadores que não respeitam normas de segurança do trabalho e causam, assim, acidentes; e casos de violência doméstica). Ademais, tem-se o caráter impositivo, de tradução de posições públicas institucionais, como a conscientização acerca da segurança no ambiente de trabalho e da prevenção à violência contra a mulher.
No caso específico das ações previdenciárias, há previsão expressa no artigo 120 da Lei 8.213/1991: “Artigo 120. Nos casos de negligência quanto às normas padrão de segurança e higiene do trabalho indicados para a proteção individual e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis”.
Tal dispositivo cuida da hipótese de ação regressiva em face do empregador por descumprimento de normas e segurança do trabalho. Há ainda outras duas hipóteses: ação regressiva pelo cometimento de crimes de trânsito na forma do Código de Trânsito Brasileiro e as ações decorrentes do pagamento de benefícios previdenciários por ilícitos abrangidos pela Lei Maria da Penha. Essas últimas hipóteses se encaixam na regra geral de responsabilização civil, e são embasadas pelos artigos 186 e 927 do Código Civil.
É certo que o regramento faz menção específica somente aos acidentes de trabalho. Contudo, é a origem em uma conduta ilegal que possibilita o direito de ressarcimento da autarquia do seguro social. Tal raciocínio se acentua ainda mais ao se interpretar o artigo 121 da Lei de Benefícios, que prevê que o pagamento das prestações por acidente do trabalho pela Previdência Social não excluirá a responsabilidade civil da empresa ou de outrem.
Transparece lúcida a possibilidade da cumulação de um benefício previdenciário (decorrente da violência doméstica) com a reparação civil oriunda de um ato ilícito, o que culmina no ressarcimento da autarquia. Esta tese já foi explicitamente aceita pelo STJ no Recurso Especial 1.431.150-RS. O combate à violência doméstica, sob tal perspectiva, vai além dos fins penais e atinge o patrimônio do agressor, em favor da coletividade que suporta o gasto causado por sua violência.
Importante ressaltar que a competência para julgar as ações regressivas previdenciárias é da Justiça Federal. Tal restou definido no Conflito de Competência 59.970 perante o STJ. O polo ativo será sempre o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), agindo através da Procuradoria Federal.
Não é demais lembrar que dados estatísticos de violência contra a mulher são assustadores no Brasil, de acordo com a Comissão da Mulher da OAB:
Segundo o Mapa da Violência 2015, o país contabiliza 13 homicídios de mulheres por dia. E, mesmo com a aprovação da Lei 13.104/2015, que inseriu a prática no rol de crimes hediondos do Código Penal, a cada dia se ouve falar de mulheres mortas por sua condição de mulher. Em uma apuração feita pela revista Claudia, somente no primeiro mês deste ano foram contabilizados 50 casos de feminicídio divulgados pela mídia no Brasil. A pesquisa excluiu notícias de mulheres assassinadas sem pistas do suspeito e da motivação, por exemplo.
No Carnaval, a situação não foi diferente: o balanço divulgado pela Polícia Militar revelou que ao menos uma mulher foi agredida a cada quatro minutos durante os cinco dias da festa no Rio de Janeiro, entre as 8h do dia 24 de fevereiro e 8h de 1º de março. A PM informou que foram realizados 15.943 atendimentos neste período e, deles, 2.154 eram derivados de pedidos de socorro sobre violência contra mulher. [4]
Não há como distorcer os fatos: são, sim, assustadores. As ações regressivas constituem medida de implementação de política pública contra a violência doméstica também. Seu fulcro é a manutenção da ordem pública, o enfrentamento e a prevenção à violência doméstica, coibindo o agressor de repetir fatos agressivos. Atingindo, na linguagem popular, seu órgão mais valoroso: o bolso.
* Procuradora federal, lotada no Núcleo de Acidentes do Trabalho da Procuradoria Regional Federal da 2ª Região. Pós-graduada em Direito do Estado pela UERJ e em Direito Público pela Universidade Católica de Petrópolis. Integra a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe).
[1] http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/noticias/2018/11/entenda-o-sistema-nacional-e-o-plano-de-combate-a-violencia-contra-as-mulheres
[2] https://www.conjur.com.br/2017-mar-09/juiz-adiou-sessao-porque-lavrador-usava-chinelos-ressarcira-uniao
[3] https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/433556100/recurso-especial-resp-1431150-rs-2013-0388171-8/inteiro-teor-433556111
[4] http://www.oabrj.org.br/noticia/106795-8-de-marco-o-que-ha-para-comemorar
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