Se o “neo-obscurantismo” que orbita o governo de Bolsonaro não tarda em mandar queimar livros em praça pública, o momento de retrocessos em marcha traz de volta, em trincheiras outras, obras sobre minúcias do autoritarismo de um passado cruelmente recente, que teima em produzir ecos no hoje (veja como o correr dos anos no Brasil, em vez de futuro, descortinou mais passado pela frente).
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Pela Companhia das Letras, chega ao mercado editorial brasileiro, 15 anos após o primeiro lançamento, a re-edição de Castello: a marcha para a ditadura, do jornalista e escritor Lira Neto.
O que renova o interesse sobre a vida e a atuação política do general Castello Branco, um dos protagonistas do golpe de 1964? Em rara quebra de sua arrebatadora veia narrativa, que nos captura fatalmente pelas mais de 400 páginas, Lira Neto responde em poucas palavras: “incômoda atualidade” daquela conjuntura, em comparação com o país de hoje.
Na entrevista abaixo, exclusiva para o Congresso em Foco, o autor de outras biografias icônicas, como a trilogia sobre Getúlio Vargas, fala sobre o relançamento de “Castello”, e analisa o momento político e social em que nos metemos nesses últimos anos, culminando na eleição de um presidente flagrantemente desconectado dos mais elementares princípios democráticos.
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Acompanhe:
O livro foi publicado pela primeira vez em 2004, no marco de 40 anos do golpe militar. O que faz deste 2019 o momento de uma re-edição?
A reedição já estava contratada há algum tempo pela Companhia das Letras, que está colocando de novo em catálogo alguns de meus primeiros livros, até então esgotados, a exemplo do que fez no ano passado com Maysa: Só numa multidão de amores, e planeja fazer, talvez no próximo ano, com O Inimigo do Rei: Uma biografia de José de Alencar. Calhou de a republicação de Castello: A marcha para a ditadura vir a lume em um momento político que conferiu ao livro, 15 anos depois, incômoda atualidade.
Como a biografia foi estruturada, e a partir de que conjunto de fontes?
Recorri, em primeiro lugar, ao arquivo do próprio biografado, que está sob a guarda da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, a Eceme, no Rio de Janeiro. Também tive a preciosa ajuda do brasilianista John W. F. Dulles, que escreveu dois livros sobre Castello Branco, publicados na década de 1970. Ele enviou-me, diretamente da Universidade do Texas, onde era professor, nove volumes encadernados com as notas das entrevistas que fez, à época, com personagens decisivos da história, como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitscheck e João Goulart. Para completar, consultei jornais de época e outros documentos do período, tanto na Biblioteca Nacional quanto no Arquivo Nacional.
Dados e informações relativos aos anos de ditadura comumente são revestidos de algum grau de sigilo, o que, naturalmente configura obstáculo ao trabalho do biógrafo. Em sua jornada, encontrou essas barreiras? Se sim, como as atravessou?
De início, digamos, houve certa cautela da Eceme em franquear a pesquisa de um pesquisador civil nos arquivos do ex-ditador. Mas, como se tratam de documentos públicos, embora sob custódia de uma instituição militar, foi preciso apenas alguma negociação mínima, em termos bastante civilizados, para que os oficiais responsáveis pela gestão da biblioteca me permitissem acesso total e completa liberdade para trabalhar.
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Em vigoroso prefácio, a historiadora e cientista política Heloisa Murgel Starling alerta que “Castello não fornece nenhum instrumento capaz de prever os acontecimentos políticos do nosso tempo e, convém anotar, nem esse é o objetivo de Lira Neto”, mas que a obra “oferece perspectiva”. Qual?
O prefácio da historiadora Heloisa Starling foi um honroso presente para mim. De fato, a escrita da história não tem o condão nem o anseio de prever o futuro. No máximo, ela nos permite analisar o presente em perspectiva. No caso específico, creio ser importante compreender as motivações do golpe civil-militar de 1964 e o modo como a caserna tem se comportado ao longo destes 130 anos de República. Estudar a origem do pensamento autoritário no Brasil, bem como a recorrência de suas práticas discursivas — baseadas desde sempre em um ufanismo pedestre, na indignação seletiva contra a corrupção e na fantasmagoria do “perigo vermelho” — também ajuda iluminar o cenário atual.
Sendo jornalista, biógrafo, mestre em semiótica e doutorando em história, em que medida a atual conjuntura política e social do Brasil o afeta, com tantos ataques do governo Bolsonaro e de seus apoiadores imediatos à imprensa e à história do país?
Penso que todos nós que trabalhamos na área da cultura, da arte, da educação e do conhecimento fomos eleitos, pelo bolsonarismo, como alvos prioritários da guerra semiótica posta em curso. Um governo fundamentado no ódio, na mentira, no obscurantismo e na ignorância é incompatível com o pensamento crítico, livre e criativo. Daí, a estratégia de tentar tolher as inteligências, as sensibilidades e os afetos.
A propósito, têm razão de ser as preocupações cada vez mais presentes no debate público sobre ameaças em curso contra a democracia?
Já não se tratam mais de ameaças, mas de ações políticas coordenadas para minar a democracia e conspurcar os pesos e contrapesos das instituições que a compõem. A cada nova ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, a cada agressão contra as minorias, a cada atentado oficial contra a autonomia universitária, por exemplo, o campo democrático se esgarça. A escandalosa politização do judiciário também trabalha no mesmo sentido.
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Em recentes reflexões como colunista, você mostra que as guerras contras inimigos imaginários (como a dos militares de 1964 contra uma “república sindicalista”, ou a de Bolsonaro contra “os comunistas”) são movimentos cíclicos, recorrentes na história do Brasil. Sendo um ciclo, é possível vislumbrar uma saída para o obscurantismo em marcha?
Como todo ciclo, ele será passageiro. Mas a intensidade e a duração de seus efeitos vai depender de nossa capacidade de saber reagir de forma efetiva ao avanço do obscurantismo, de não nos deixar apanhar na armadilha das bombas semióticas, de não cair nas táticas diversionistas postas em ação por ministros toscos e provocadores, que agem como bufões e bobos da corte para encobrir aquilo que realmente está em jogo: um perverso projeto de desmanche social e econômico de todo um país.
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Por falar nisso, em julho, você teve um tuíte viralizado (abaixo), com dicas de como atravessar esses tempos de obscurantismo. Mantém as práticas e o conselho?
Mais do que qualquer coisa, precisamos transformar nossas perplexidades em ação. Apostar na arte, na inteligência e na alegria não significa alhear-se da participação política, voltar-se para o próprio umbigo, adotar uma atitude individualista e um conformismo ingênuo. Muito pelo contrário. Sabotar este projeto ideológico tenebroso e sua necropolítica pressupõe construir pontes de diálogo e mobilizações coletivas.
Leitor pergunta como seguir saudável nesta maré de obscurantismo. Sugiro a sabotagem: ler literatura, assistir a bons filmes, frequentar exposições de arte, ir à roda de samba, dançar forró, amar. Cultivar subversiva alegria. Contra a pulsão de morte, só a anarquia da felicidade.
— Lira Neto (@LiraNeto_) July 28, 2019
*Heitor Peixoto é jornalista. Twitter: @heitor_peixoto