Luciana Genro*
Eu detesto shopping. Só vou por causa dos cinemas. Não é por uma questão ideológica, eu simplesmente me sinto mal com aquele apelo ao consumo desenfreado, inclusive dos vendedores que sempre querem te empurrar alguma coisa mais, desesperados para aumentar seu mísero salário com as comissões de venda. E o shopping é o templo do capitalismo justamente por causa deste apelo. Consumir é vital, pois no capitalismo tudo é mercadoria (inclusive a força de trabalho do ser humano). Mas é somente na troca (compra e venda) que o valor das mercadorias se realiza. Paradas elas não valem nada. Por isso a busca permanente por criar novidades e gerar necessidades. O que temos tem que se tornar obsoleto para que sejamos compelidos a consumir, realizar o valor das mercadorias, e assim fornecer combustível para o capitalismo.
Mas para que a troca seja possível é preciso a igualdade jurídica. No escravismo, por exemplo, a troca era algo excepcional e a desigualdade entre os indivíduos era parte essencial das relações sociais. Não era preciso igualdade; ao contrário, a sociedade era movida a chibatadas. Neste sentido, o capitalismo foi uma evolução tremenda. Com a generalização da troca a igualdade tornou-se um imperativo, pois é necessário que eu reconheça no outro um igual para que possa com ele trocar.
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Para realizar o valor das mercadorias são necessários sujeitos que as coloquem em circulação, trocando. Isto é, comprando e vendendo, supostamente em pé de igualdade e com plena liberdade. Mas esta ideia de igualdade e liberdade não passa de uma fantasia. Qual é a igualdade e a liberdade real existente na relação de compra e venda da força de trabalho, por exemplo? Nenhuma. Qual é a igualdade real existente entre um jovem negro da periferia e um branco de classe média? É só uma “máscara”, e ela tem uma função muito importante para o Sistema.
“A função desta ‘máscara’ [da igualdade] é fazer ignorar o que permanece por detrás dela, é dissipar as diferenças para que, no plano das relações jurídicas, todos os indivíduos se coloquem num mesmo patamar. (…) No momento da troca, o que permanece visível são apenas duas máscaras idênticas, máscaras de sujeito de direito, e não dos homens concretos, situados, determinados. A igualdade jurídica, que nada mais é que a igualdade das ‘máscaras’, é essencial a esta relação, tanto quanto (e na exata medida em que) é essencial a equivalência formal das mercadorias trocadas. Ora, assim como entre os embrulhos idênticos das coisas em comércio é possível colocar uma medida comum, o valor, entre as máscaras idênticas dos homens atomizados é possível colocar a medida comum do direito.” (Kashiura Júnior, Celso Naoto. Crítica da Igualdade Jurídica – Contribuição ao pensamento jurídico marxista. Quartier Latin, 2009. Pág. 61).
A repressão, inclusive juridicamente sustentada, contra os jovens da periferia que vão dar “rolezinho” no shopping é o momento em que a fantasia da igualdade é desfeita de forma cabal. Caiu a máscara do direito. Ele não tem direito a igualdade jurídica com os jovens de classe média que também circulam aos bandos pelo shopping, pois os pobres não trocam, isto é, não consomem. Como ensinou um dos mais importantes juristas marxistas, Eugeny Pachukanis, esta igualdade que assegura a todos a capacidade abstrata de ser proprietário de mercadorias é puramente formal.
Os jovens pobres não têm direito de circular pelos shoppings, pois eles não pertencem ao mundo do consumo. Sem consumir, são descartáveis – pois inúteis ao capitalismo – e o lugar deles é nas periferias. Mas se ousam invadir o templo do consumo, a polícia é chamada mesmo que não roubem, não furtem. Mas, se não se contentam com o seu lugar periférico e querem ocupar o espaço dos consumidores sem consumir, é para os presídios imundos – como o de Pedrinhas no Maranhão ou o Central em Porto Alegre – que eles devem ir. Polícia neles!
E não faltam vozes, algumas até bem intencionadas, clamando por mais encarceramento. São os aparatos ideológicos do Sistema agindo para convencer os “do bem” que do outro lado estão os “do mal” e que os encarcerando estaremos todos mais seguros. Esta separação entre os “do bem” e os “do mal” é muito conveniente para o Sistema. Os “do mal” são os que não têm capacidade de consumo e só atrapalham e amedrontam os “do bem” que estão no shopping para consumir e fazer girar a roda do capitalismo. No caso dos “rolezinhos” não há roubo nem violência, mas isso não importa. Eles não compram, então não pertencem àquele lugar, são “do mal”, tem que ser expulsos.
E nos presídios, lugar reservado aos descartáveis, reina a barbárie, como vimos de forma mais aguda no Maranhão e como o filme Tropa de Elite 2 já tinha mostrado. A sociedade se chocou com a violência em Pedrinhas, mas é hora de refletir por que se chegou a este extremo. É hora de parar o clamor por encarceramento e aumentar o clamor por direitos!
E falando do filme Tropa de Elite 2, exibido ontem na Globo, precisamos mesmo é de milhares homens e mulheres com a coragem e a generosidade do deputado Fraga (que para quem não sabe é o nosso Marcelo Freixo do PSOL-RJ) para desmontar não só as milícias mostradas no filme, mas para seguir com mobilização popular, no combate ao inimigo, o Sistema.
* Luciana Genro é ex-deputada federal pelo Psol, advogada e fundadora da ONG Emancipa