Marco Aurélio de Carvalho* e Pedro Carriello**
Processos não podem ter “capa”.
O julgador não deve fazer distinção entre julgados. Nunca, em circunstância alguma.
Juiz fala nos autos. Promotor idem. Pelo menos é assim que deveria ser.
Incontáveis juízes, e, cremos, muitos promotores também, calados e escondidos, devem estar envergonhados com a postura adotada pelos personagens desta novela mexicana que ganhou os holofotes da imprensa nacional e internacional nos últimos dias.
Bem sabem o quanto estes fatos comprometem as próprias instituições a que pertencem.
É preciso haver uma distância obrigatória entre as atribuições do acusador e a de um juiz — de um juiz justo.
E é preciso fazer valer, no caminhar dos atos processuais, o sistema acusatório em toda sua essência, com foco especial no discurso jurídico, num atuar cênico cauteloso pelas consequências dos atos restritivos, e , tanto mais, em um agir contra majoritário na proteção dos direitos fundamentais, nas razões de decidir e na parte dispositiva do decisum. São alguns exemplos de uma lista que não se pretende esgotar.
Pela natureza originária vingativa do Poder Punitivo, uma marca primitiva em seu DNA, é fundamental desenvolver o cuidado para que não se compreenda um juiz como um agente estatal de segurança pública, ou uma espécie de super-herói contemporâneo, ou até mesmo como um “digital influencer” em redes e círculos sociais.
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O agente público, personagem da trama acusatória, deve ter uma espécie de lei interna: daqui eu não posso passar.
O grau de erosão, de destruição, ou, quem sabe, da falência completa do sistema acusatório, ganhou maior contorno dada a dimensão pública dos interlocutores destes últimos lamentáveis episódios revelados pelo site The Intercept.
Um tiro de canhão no nosso já tão combalido Estado de Direito, recentemente fraturado por um impeachment sem crimes de responsabilidade, por um ativismo judicial sem precedentes na história do país e por constantes (re)interpretações do texto constitucional em razão de um tal “sentimento social”.
Messiânicos, vaidosos e muito pretensiosos, os referidos agentes públicos, reunidos em uma “sala de justiça virtual”, pretendiam nos conduzir a um “oásis republicano”.
Nem uma tragédia grega, com o característico contorno moralista, e sob os auspícios dos deuses, conseguiria ilustrar com detalhes tão coloridos o que se extrai das conversas entre Moro e Dellagnol, e entre eles e tantos outros procuradores da Força Tarefa da Operação Lava Jato.
A travessia contra a corrupção tinha uma forma e um enredo, assim como em uma escola de samba.
A letra, pomposa, foi puxada por respeitáveis( !?) “homens do Direito”, acima de toda e qualquer suspeita .
Como adereços, a alegoria do “bem contra o mal” e as apresentações quase infantis de PowerPoint, próprias de “quem deve ter aprendido a jogar bolinha de gude em carpetes de veludo” .
Tudo embalado pelo refrão legalista: “estamos agindo dentro da lei, legitimados por órgão colegiado”.
Hipocrisia pura.
No mundo real, estes personagens usurparam da nobre função pública que abraçaram , e devem, pois, responder rigorosamente por isso.
Moro, entre tantas outras graves ilegalidades, indicou testemunhas aos procuradores do caso sobre o qual deveria lançar “olhos imparciais”, ignorou a prova dos autos (e a falta de) , e desrespeitou incontáveis vezes a defesa técnica e, assim, o próprio direito sagrado de defesa.
Conduziu, com força e foco, cada etapa do processo, com o apoio vergonhoso de um procurador bajulador e muito mal preparado.
Agora, sabe-se que mesmo internamente estas posturas foram reconhecidas como inadequadas e escandalosamente violadoras de preceitos éticos e legais.
Sabe-se, também, que testemunhos foram construídos com o único e exclusivo objetivo de dar amparo a teses mentirosas da acusação.
O caso do executivo Léo Pinheiro, revelado pela Folha de S. Paulo desse último domingo, é apenas mais uma escandalosa demonstração .
Ação meticulosamente orquestrada com um único e exclusivo objetivo: eliminar das eleições presidenciais passadas o seu franco favorito.
A omissão, entretanto, “ é o pecado que se faz não fazendo”.
Muitos discordaram, mas se calaram…
Quem sabe agora, com as recentes revelações, resolvam se manifestar. Até mesmo para se diferenciarem e distinguirem.
Não queremos presenciar o esgotamento do que é certo ou errado ou, por fim, o próprio réquiem do Direito.
Mas há sempre uma saída, ainda que não seja para muitos emergencial.
É a porta constitucional, com um letreiro luminoso, claro e inegavelmente direcionador para a solução dos problemas, inclusive os desse episódio.
Ressalte-se que não estamos em uma busca por um voluntarismo judicial ou por uma constituição para chamarmos de nossa.
É chegada a hora de arrumarmos de forma clara o ambiente do sistema acusatório, não só declarando nulos os atos que violam flagrantemente regras constitucionais e processuais.
Precisamos , também, olhar para o espaço cênico dos personagens do processo penal e para seus “assentos” na audiência.
Temos que romper com esse modelo linear de juiz e promotor na ação penal, trazer o órgão de acusação, com todo seu status, para uma paridade de armas com a defesa.
Quem olha, precisa ver e saber que são diferentes, como placas ou sinais de trânsito, sem dubiedades.
Até no olhar do público, dos espaços da Justiça, no lugar de fala das partes, a diferença precisa ser externada. Não deixa de ser impactante ver um promotor de Justiça ao lado do juiz, na mesma mesa e posição, lado a lado.
Outro ponto essencial é a situação dos réus em situação de vulnerabilidade que lotam os cárceres brasileiros.
O Supremo Tribunal Federal já afirmou na ADPF 347 que nosso sistema prisional é um estado de coisas flagrantemente inconstitucional, com constantes violações aos direitos fundamentais. Ponto inegável.
O processo não pode ser a negativa do próprio Direito, não pode ser ele próprio um instrumento de violação.
Deve haver uma equivalência e proporcionalidade entre o processo e a sanção penal, não sendo exigido do portador de direitos fundamentais uma antecipação de pena ou , mesmo, a sua execução após o segundo grau quando ainda não há esgotamento das fases recursais.
Nesse episódio das conversas, onde aparece a confusão entre o juiz e o acusador, vem logo à memória a obrigação de que devemos redobrar a luta para que se cumpra o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF) , segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Aqui temos duas certezas, inegáveis, até para quem relativiza ou vê a norma de forma torta: não aplicar a presunção na sua densidade vai gerar, como tem acontecido, um encarceramento em massa dos pretos, pobres e periféricos. Vai gerar, também, o que é igualmente grave, a prisão de centenas de pessoas inocentes condenadas sem o respeito ao devido processo legal, seja por erros judiciais, ou, ainda pior, pela ação deliberadamente criminosa de agentes públicos ávidos pelos conhecidos “15 minutos de fama”.
As defensorias públicas do Brasil têm lidado com isso, basta ver os alarmantes dados já divulgados sobre o tema.
Cada vez se prende mais, e cada vez se prende mais injustamente! A presunção de inocência não pode ser corrompida em razão de um ilusório combate à corrupção.
Longe de ignorar a gravidade da corrupção, mal que invade tanto a iniciativa privada como a vida pública.
O combate a um problema sistêmico e complexo – que inclui aperfeiçoamentos constantes nos programas de integridade e compliance – não deve corroer o sistema de Justiça e nem tão pouco ignorar ou distorcer a lei.
Neste sentido, a propósito, recomendamos a leitura do magnífico livro “O Espetáculo da Corrupção “ ( obra em que se analisa como um Sistema Corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país), escrito pelo jurista Walfrido Warde.
A presunção de inocência precisa ressurgir, pois, de forma majoritária no Supremo Tribunal Federal, com todas as vênias. O tema é central e precisa ser enfrentado de forma urgente, tanto nas decisões monocráticas, de órgão fracionário , como pela força singular do plenário. Está escrito na Constituição. A interpretação é literal e não deixa margem a dúvidas de qualquer natureza.
Injustiças estão acontecendo, prisões estão ocorrendo.
A liberdade perdida jamais será restituída. E isto é realmente o mais grave.
Não se pode, por receio de que se enfrente finalmente a inegável perseguição política que mobilizou nos últimos anos todo o aparato estatal de “justiça”, prejudicar milhares de brasileiros que estão aguardando o julgamento , pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, das ADCS 43,44 e 54.
Hoje, à espera de justa e necessária reparação, o Brasil e o mundo desejam a imediata libertação de um homem que, como David Gale nos Estados Unidos, pautou por aqui a discussão sobre o nosso nefasto e medieval sistema de Justiça.
Sem perder a ternura, mesmo preso, Lula sempre esteve mais livre do que qualquer um dos seus algozes.
No interior de uma sala fria de Curitiba, Lula pautou o debate nacional sobre o amor e a tolerância.
Fez da imensa dor pela perda de entes queridos, como o irmão Vavá, o pequeno neto Arthur e o querido, inesquecível e combativo amigo Sigmaringa, um estímulo para continuar lutando por sua liberdade e pela comprovação de sua inocência.
Estas sejam talvez as razões para que se possa, no futuro, ver algum sentido ou propósito nesta farsa dantesca cujo roteiro agora se revela.
Ao Lula, e aos seus queridos familiares, devemos um sincero e retumbante pedido de desculpas.
Em especial à Dona Marisa Letícia, tão injustamente agredida e atingida por estes pseudos “Salvadores da Pátria”. A história não os perdoará!
E, sobretudo, devemos também os nossos sinceros agradecimentos pela oportunidade única de repensarmos, com um olhar crítico, os mecanismos de contenção para os abusos e ilegalidades que tanto comprometem a crença no Estado de Direito e em uma Justiça verdadeiramente imparcial.
Não somos niilistas, mas não queremos, agora, um lembrete de Nietzsche em relação à nossa Constituição:
“Como nos consolar, a nós assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos deles? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então” – a Gaia Ciência, §125.
O desafio está lançado.
Há um grito preso na garganta…
*Marco Aurélio de Carvalho é advogado especializado em Direito Público. Sócio fundador do Grupo Prerrogativas e da ABJD
**Pedro Carriello é defensor público do ERJ atuando no STF/STJ
>>Conselho do MP arquiva investigação sobre conversas entre Deltan e Moro