No dia em que o presidente Jair Bolsonaro agrediu verbalmente uma mulher jornalista pela segunda vez, no intervalo de quatro dias, coube à líder da bancada feminina no Senado arrancar de um depoente da CPI da Covid uma informação que deixou o chefe do Executivo entre as cordas. Depois de tergiversar sobre quem era o parlamentar citado por Bolsonaro como possível responsável por irregularidades na compra de uma vacina indiana, o deputado Luis Miranda (DEM-DF) cedeu aos apelos da senadora Simone Tebet (MDB-MS) e declinou o nome do até então misterioso personagem: o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR).
Para Simone Tebet, o depoimento prestado à comissão ontem por Luis Miranda e seu irmão, o servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, é um divisor de águas nas investigações e torna ainda maior a dependência de Bolsonaro do Centrão. Barros é um dos líderes do bloco informal que reúne partidos de direita e centro-direita que apoiam o presidente. Além de fundamental nas votações legislativas, o grupo é visto como fiador de Bolsonaro para conter um eventual processo de impeachment.
Na avaliação da senadora, o presidente ficou encurralado agora em uma “sinuca de bico”. “A dúvida é saber o que o presidente vai fazer. Se ficar com o Centrão, o bicho pega, a situação chega mais próxima dele. Se ele se afastar do Centrão, ele terá dificuldade para governar. Não vejo facilidade. O nome citado ontem pelo deputado coloca o governo numa sinuca de bico, numa escolha de Sofia muito difícil”, disse Simone Tebet ao Congresso em Foco.
A senadora entende que a CPI da Covid já é exitosa, por ter confirmado que o governo apostou na chamada imunidade de rebanho, tese segundo a qual a imunização se daria pelo rápido contágio da população. E, com cerca de dois meses de funcionamento, percorre o rastro da corrupção, cujo combate foi usado como bandeira política por Bolsonaro desde o início da campanha eleitoral. “Com esses holofotes vindo à tona, isso já impacta a popularidade do presidente e sua gestão, independentemente do que vier pela frente.”
Simone Tebet acredita que a CPI terá de colocar os personagens citados pelos irmãos Miranda frente a frente para esclarecer quaisquer contradições. “A partir de agora, precisamos fazer uma acareação coletiva, termo que estou inventando, porque normalmente é feita de dois. Precisamos colocar frente a frente os personagens principais, que podem esclarecer as contradições. O primeiro é o Pazuello [ex-ministro da Saúde], depois o Elcio [Franco, ex-secretário-executivo do ministério], que era o número 2 dele, o tenente-coronel Alex [Lial Marinho], o chefe do Luis Ricardo Miranda, a Regina Célia e o presidente da Precisa. São personagens que precisam ser colocados frente a frente”, defende.
Na entrevista a seguir, a senadora também conta qual foi sua estratégia para arrancar de Luis Miranda o nome de Ricardo Barros. O líder do governo nega ter participação no caso. Mesmo sem nenhuma representante entre titulares e suplentes da CPI, as senadoras têm participado ativamente dos depoimentos.
Congresso em Foco – Qual a importância do depoimento dos irmãos Miranda à CPI da Covid?
Simone Tebet – Foi um divisor total de águas na CPI, que já tinha passado da primeira fase, da comprovação, da materialidade dos fatos de que houve realmente um governo paralelo. que quis implantar a imunidade de rebanho por contaminação e, por isso, atrasou as vacinas, não fez campanha publicitária e usava de narrativa equivocada para estimular as pessoas a se contaminarem rapidamente, achando que seria uma pandemia de menor grau, que levaria as pessoas a voltarem ao trabalho. Esta fase está praticamente concluída.
Qual é essa nova etapa?
Começamos a entrar ontem na suspeita de denúncias de possível superfaturamento de compra de vacina, tráfico de influência, advocacia administrativa, fraude em licitação, envolvendo autoridades públicas. Quando começamos, esperávamos extrair do servidor indícios e documentos, não esperávamos que o deputado fosse apontar algum nome, embora, logo de início, ele tenha deixado claro que o presidente sabia sim do caso e até que havia envolvimento do Centrão através de um parlamentar. Todos desconfiávamos quem poderia ser, mas não tínhamos a certeza. A importância é que não foi qualquer deputado que falou. Foi um deputado da base governista, que estava junto com seu irmão. Isso mudou totalmente. Há elementos para a primeira fase do relatório do Renan em relação a essa imunidade de rebanho por contaminação, o que é gravíssimo. Agora, há possíveis investigações de corrupção e crime de administração pública. Falta agora é colocar, nome, sobrenome e o CPF dos autores desses supostos crimes, que terão de ser mais devidamente apurados. Entramos em uma nova fase, sem dúvida alguma.
O cerco se fecha, ainda mais, contra o presidente?
A fala do deputado e do servidor foi fundamental e exige do presidente uma reação. Vai manter líder do governo sob suspeição? O líder do governo vai conseguir comprovar que não tinha relação, que não era ele o deputado envolvido? Lembrando que há um conjunto de elementos. Estamos falando de um quebra-cabeça montado à luz de documentos. Houve uma medida provisória com uma emenda apresentada pelo líder do governo, incluindo a Anvisa da Índia como uma das que poderiam ser aceitas para se trazer vacina sem autorização da Anvisa brasileira. Esses indícios precisam ser comprovados, mas é o novo rumo para CPI.
Como comprovar que o presidente sabia?
O mais importante, no entanto, é o fator político. O que sustentava o governo, com política totalmente equivocada no combate à pandemia, era o argumento de que era um governo honesto, que tem a bandeira do combate à corrupção. Como assim? Ele sabia ou não sabia? Se sabia, mandou investigar? Não mandou investigar? Qual foi a conclusão desses fatos? Agora a peça-chave é o ministro Pazuello, que vai ter de dizer o que fez com a solicitação do presidente. É preciso saber quem deles prevaricou. Se um ou os dois. Não foi uma denúncia feita pela oposição, por um cidadão na rede social. Foi feita por um parlamentar da base aliada, com informações de documentos frutos de alguém de sua máxima confiança, o irmão dele.
O governo tenta agora desqualificar o deputado Luis Miranda, que até então era seu aliado…
Podiam desacreditar o parlamentar por sua vida pregressa. Todos nós temos lado bom e ruim, mas ele foi muito claro no sentimento de proteger o irmão, que é um humilde servidor que está do lado certo da história. O irmão redime o deputado quando traz a ele essa responsabilidade, um servidor que interfere no posicionamento do Estado. Quem estava ali presenciou claramente isso.
O senador Randolfe diz que entrará com notícia-crime contra o presidente no STF e na PGR. É a melhor estratégia? A CPI deve fazer isso?
Não vou entrar nesse mérito porque cada parlamentar tem direito de se manifestar. Fica complicado avaliar. Mas entendo que precisamos ter algumas cautelas. O resumo da opera ou a análise mais fria depois do amanhecer é que os indícios que nos chegaram passam a se transformar em denúncias graves e plausíveis e já com uma prova testemunhal. A partir de agora, precisamos fazer uma acareação coletiva, termo que estou inventando, porque normalmente é feita de dois. Precisamos colocar frente a frente os personagens principais, que podem esclarecer as contradições. O primeiro é o Pazuello, depois o Elcio [Franco], que era o número 2 dele, o tenente-coronel Alex [Alial], o chefe do Luis Ricardo Miranda, essa Regina Célia e o presidente da Precisa. São personagens que precisam ser colocados frente a frente. Novo foco tem de ser esse. Mudando até a presença dos demais convocados, deixando os outros para depois. Essa investigação está apenas começando. Aí pode, com base na fala de Pazuello, falar alguma coisa. Não adianta apenas apresentar notícia-crime e não ter elementos e depois ter decisão contrária. É uma decisão muito particular do senador, acho que ele vai fazer não como membro da CPI, mas como partido.
A convocação do deputado Ricardo Barros é a prioridade da CPI agora?
O deputado deve querer comparecer à CPI espontaneamente para esclarecer. Ele é parlamentar, precisa ser ouvido, toda história tem de ouvir os dois lados. Ver o outro lado da história. É importante para o governo. Ele não é apenas deputado. A gravidade maior não é apenas o nome, mas a fala do deputado. O presidente sabia, o Luis Miranda é aliado do governo. Ele falou em tom de desabafo de quem acreditou num presidente que se elegeu com discurso da bandeira de combate à corrupção. O presidente cita um deputado federal, praticamente um braço do governo. Quando o deputado Ricardo Barros vier à CPI, estará sentado ali não apenas um deputado federal, mas um braço do governo.
O presidente sempre repete que não há corrupção no governo dele. Mas tem demonstrado nervosismo com a denúncia e com a queda de popularidade, atacando jornalistas. Com o depoimento de ontem, desenha-se o pior cenário para Bolsonaro?
Dizem que CPI não dá em nada. Esta CPI já teve resultado na avaliação política em relação ao governo federal. Diferentemente de outras CPIs, ela fala de fatos continuados e do presente. A pandemia está acontecendo. As pessoas estão morrendo aos milhares todos os dias. Dois mil mortos por dia. Com esses holofotes vindo à tona, isso já impacta a popularidade do presidente e sua gestão, independentemente do que vier pela frente. Mais claro ou menos, inclusive em relação à suspeita de corrupção com a compra da vacina. A primeira fase quase que se encerrou com a confirmação do gabinete paralelo. Agora é uma nova fase, envolvendo um personagem do Centrão.
A denúncia recai sobre um dos principais personagens do Centrão. A senhora acredita em rompimento desse grupo com o presidente?
Coloca o governo numa situação muito complicada porque o presidente cedeu a gestão da máquina pública ao Centrão da Câmara. Hoje quem tem postos-chave nos ministérios é o Centrão da Câmara. Nesse toma lá dá cá, ou você aprova projeto de interesse meu ou não vou dar meu voto para o governo, o presidente já estava refém do Centrão. Agora a dúvida é saber o que o presidente vai fazer. Se ficar com o Centrão, o bicho pega, a situação chega mais próxima dele. Se ele se afastar do Centrão, ele terá dificuldade para governar. Não vejo facilidade. O nome citado ontem pelo deputado coloca o governo numa sinuca de bico, numa escolha de Sofia muito difícil.
Quais os próximos passos da CPI?
Não sou da comissão, mas tem de aprofundar essa apuração sobre corrupção. A CPI acaba de receber uma denúncia, que abala a República. Não é uma coisa qualquer. Não sei quais os valores do mensalão e do petrolão, estou falando de um contrato de R$ 1,6 bilhão sendo questionado. Temos de apurar os fatos e ouvir o outro lado para que se elucide toda a verdade. A sociedade vai exigir isso da CPI, honestidade, transparência e a busca da verdade real. Não tem como fugir. Se vai ser primeiro acareação coletiva, se vai ouvir o presidente da Precisa. Isso o presidente Omar Aziz e o G-7 vão poder definir na próxima reunião. Mas acho que serão pelo menos duas semanas em relação a esse assunto.
Comprovando-se que o presidente sabia de irregularidades e não mandou investigar, quais as consequências que a senhora antevê para ele? Pode haver impeachment?
A CPI neste aspecto, quando envolve a autoridade máxima, deixa de ser instrumento jurídico-político para ser basicamente político. Uma coisa é a denúncia feita na esfera judicial. Outra é o que o Congresso pode fazer politicamente faltando um ano e meio para o fim do governo, numa pandemia. Não consigo enxergar possibilidade de impeachment hoje na Câmara hoje, mas vamos falar de debandada do Centrão? Centrão abandonando o barco, largando o governo à deriva? São temas dos próximos capítulos, tudo irá depender de alguns personagens centrais que terão de ser ouvidos e de provas documentas que a CPI ainda está recebendo para ter o enredo completo dessa história.
A senhora conseguiu o que os seus colegas tentaram e não haviam conseguido ontem, extrair do deputado Luis Miranda o nome do parlamentar citado pelo presidente como possível envolvido nas irregularidades. A senhora tem se sentido atacada desde então por apoiadores do governo?
Vou redobrar minhas orações. Não só de agora. Num país muito polarizado. Sempre tem. Você tem os extremos agindo na base do fígado e do ódio. Ainda que seja uma minoria barulhenta, agride. A gente tem de tomar certos cuidados. Não dava para fazer diferente. Foi muito sintomático, vi que ele queria falar. Pedi ao senador Randolfe para me sentar na frente. Vi que ele precisava de um pouco de acolhimento. Vi que ele queria um conforto para falar. Por isso, minha fala foi envolvendo a alma dele, a história dele como homem público desesperado, que ele teria proteção, não teria problema no Conselho de Ética. Eu me coloquei no lugar dele. Sei o que é passar por isso na vida pública. As coisas aconteceram do jeito que tinham de acontecer.
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