Eduardo Samoel Fonseca
Sean Abib
O exercício de direitos somente é possível em uma democracia. E a prova de sua existência não se faz em períodos de calmaria, mas sim em estado de convulsão social, política, jurídica e/ou econômica. Estas situações servem de termômetro para confirmar o respeito à soberania popular – ou da supremacia tirânica.
No panorama jurídico, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a decidir duas questões jurídicas controversas e altamente envolvidas em narrativas político partidárias. A primeira situação versa sobre a falta de imparcialidade do então juiz Sérgio Moro na condução do processo do ex-presidente Lula, acusado pelos crimes de crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A segunda, por sua vez, trata de violação à intimidade financeira do senador Flávio Bolsonaro, investigado pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Embora as situações envolvendo cada uma das discussões sejam absolutamente diversas do ponto de vista fático e temporal, o núcleo da questão é apenas um: o respeito ao devido processo legal decorrente do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da Constituição Federal).
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Segundo noticiado pelo The Intercept Brasil e por outros veículos de informação, o então Juiz Federal Sérgio Moro, responsável pela sentença condenatória de Lula, travou uma série de diálogos com o Procurador da República Deltan Dallagnol fora do processo. Nessas conversas realizadas através do aplicativo Telegram revelou-se que Moro, hoje ministro da Justiça no Governo de Jair Bolsonaro, atuou como coordenador da acusação, sugerindo testemunha, antecipando decisões, indicando provas e notas de esclarecimentos a serem dados à imprensa. Uma espécie de coaching do MPF.
PublicidadeLonge de ser normal, como diz Moro, esse tipo de tratamento é promíscuo e reprovável. A Constituição Federal brasileira assegura que ninguém pode ser julgado por um juiz que tenha interesse no resultado da demanda. É imprescindível que exista um distanciamento entre aquele que julga e as partes (acusador e acusado), e justamente por isso é que a legislação prevê a declaração de suspeição do juiz que tenha qualquer tipo de interesse no resultado final do processo (art. 252, IV, do CPP).
Já no caso de Flávio, conforme noticiado também pelo Congresso em Foco, pelo menos 6 relatórios contendo movimentações detalhadas foram encaminhadas ao Ministério Público estadual pelo Coaf. Nos relatórios é possível identificar dia, hora, agência bancária e valores de inúmeras movimentações bancárias realizadas por Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio. Além disso, o Coaf, sem prévia autorização judicial, forneceu relatório de outros 85 funcionários da Assembleia legislativa do Rio de Janeiro, destacando movimentações atípicas. Em evidente situação de devassa da intimidade financeira alheia.
Não se pode normalizar o absurdo. É indiscutível que o órgão acusador deva dar início à investigação criminal e amealhar todos os elementos de prova suficientes para a formulação de uma acusação. Todavia, não pode fazê-lo com base em documentos auferidos à revelia da lei, de forma clandestina. A Carta Cidadã de 1988 protege o sigilo bancário como desdobramento da garantia fundamental da inviolabilidade da intimidade. Não é por outra razão que a mitigação desse direito somente é possível de modo excepcional, necessário e desde que fundamentado pelo órgão judicial (art. 93, IX, da CF).
Confirmadas as situações, alternativa não resta ao Poder Judiciário que não seja a declaração de nulidade dos respectivos casos, o que implicará, no caso de Lula, a apresentação de uma nova denúncia para apuração dos fatos e, no caso do senador carioca, o descarte de todo material colhido para abertura de uma nova investigação, partindo-se do zero. Invertendo-se a situação e o papel dos sujeitos inseridos nos dilemas penais, o resultado nulidade é necessariamente o mesmo, por dever de coerência das decisões judiciais.
É fato que as aventadas (e únicas) consequências previstas em leis podem gerar descontentamentos e inflamar determinados grupos ideológicos. É essa a reação esperada quando se trata de agentes públicos notórios. De todo modo, é fundamental que se entenda que não há espaço para a figura do inimigo no processo penal e que a função do STF – ou de qualquer outro órgão jurisdicional – não guarda nenhum dever com a maioria política ocasional. O seu agir e compromisso, ao contrário do que ocorre nos poderes legislativo e executivo, está alicerçado na máxima proteção à intangilidade dos direitos individuais. É justamente essa função contramajoritária do direito que justifica e legitima a sua atuação, sob pena de incorrer na ditadura da maioria (política) já experimentada e rechaçada na história da humanidade.
O julgamento do habeas corpus que pode colocar Lula em liberdade será retomado no próximo mês pelo STF. Também há notícias de que o Tribunal antecipará, ao término do recesso forense de julho, o julgamento sobre o compartilhamento de dados pelo Coaf, o que afetará o caso de Flávio.
No cenário político, agosto é considerado o mês do desgosto, mas como em matéria de direito não se discute sorte ou azar, eis as oportunidades do STF de testar o tamanho de sua envergadura e independência, pois aferir a (im)popularidade de um tribunal e a sua autoridade somente é possível em um regime imperfeito e inacabado, como em todas democracias.
*Eduardo Samoel Fonseca é advogado criminal e Mestre em Processo Penal pela PUC/SP; Especialista em Ciências Criminais pela PUC/MG e em Direito Penal pela Universidade de Salamanca – Espanha. É presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-SP – Subseção Penha.
**Sean Abib é advogado criminal e mestrando em Direito Penal pela PUC/SP.