– Sim: incoerente, foi o que eu disse.
– Mas como incoerente, se eu condeno os corruptos todo santo dia e digo isso até nas pesquisas que respondo? No mês passado passou aqui um camarada de um desses institutos perguntando o que eu acho mais importante na hora de escolher um candidato e eu respondi: “Deve-se escolher em primeiro lugar os candidatos honestos”. Depois, avaliar o currículo e as propostas. E aí, decidir em quem votar.
– Curioso, você diz que é contra os corruptos mas não reclama quando seus candidatos praticam atos corruptos.
– Como assim?
– Ora, outro dia mesmo você me mandou uma tabelinha da Copa com a foto de seu candidato. A lei é clara: está proibida a distribuição gratuita de qualquer produto de propaganda eleitoral que tenha utilidade prática. Antigamente os candidatos podiam distribuir tudo: bonés, camisetas, canetas, o diabo. Agora não pode mais nada. Pode até vender, mas não pode dar de graça ao eleitor. Muito menos fora do período de propaganda. E você sabe disso.
– Ah, mas uma tabelinha da Copa é uma bobagem, não tem problema algum. E, se quer saber: nem mesmo um boné ou uma camiseta podem ser considerados crimes eleitorais. Essa lei é uma bobagem.
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Fumaça de cigarro e adaptação emocional
O diálogo aí de cima precisa viralizar, a fim de colocar as coisas em seus devidos lugares. É muito curioso que pessoas de bem condenem a corrupção, mas admitam tranquilamente e sem contestação a sua prática nos pequenos gestos do dia-a-dia. Há algumas semanas foi divulgado na revista Nature Neuroscience o resultado das pesquisas realizadas na Universidade College London e na Universidade de Duke. De acordo com elas, o cérebro se adapta à desonestidade. O trabalho indica a existência de um princípio biológico básico que contribui para a aceitação desses atos infracionais à medida em que eles vão sendo repetidos, que os cientistas chamam de “adaptação emocional”. Um dos pesquisadores, Neil Garrett, explica que o processo adaptativo é um princípio-chave no estudo de como o cérebro processa informação sensorial. “Se você entra em uma sala repleta de fumaça de cigarro, o cheiro inicial será muito forte. Depois de alguns instantes, o seu sistema olfativo vai se ajustar à presença da fumaça, e você vai percebê-la bem menos”. A ideia era verificar se seria possível provar que nos adaptamos a situações que inicialmente até condenávamos, como trapacear, ser infiel ou mentir. Depois de vários testes, os cientistas comprovaram uma espécie de “naturalização” das práticas que originalmente as pessoas consideravam aversivas. Isso explicaria o fato de que a corrupção pode até inicialmente ser repudiada, mas, com o tempo e as vantagens de quem a pratica, passa a ser considerada aceitável. E, o que é pior: em muitos casos, passa até a ser recomendada, como preceitua a conhecida Lei de Gérson. “A gente tem de levar vantagem em tudo, certo?”, dizia o ex-jogador num comercial de antigamente. Esse “levar vantagem” inclui práticas reprováveis, desde que o objetivo seja atingido.
Tu que te entendas com tua consciência
Logo no início da Copa, correu pelas redes uma crítica ao narrador Galvão Bueno por ter dito, durante um dos jogos, que um jogador faltoso, em vez de parar pra ver se o juiz dava ou não uma falta, deveria continuar a jogada, porque podia ser que ele não tivesse percebido e, assim, ele levaria vantagem em relação ao adversário. Ou seja: a lógica é sempre a mesma. Se o delito me favorece e ninguém percebe, então é aceitável. Vale para um jogador de futebol, vale para um candidato, vale para um eleitor, vale para um cidadão em seu dia-a-dia.
Numa viagem a Portugal, fui pegar um “eléctrico”, como eles chamam por lá os bondes movidos a eletricidade. Alguns não têm cobrador. O usuário introduz moedas numa máquina que emite o bilhete e dá o troco. Tudo automaticamente. Ao fazer a operação, a máquina não emitiu meu bilhete. Indaguei a um senhor português sobre o que deveria fazer, e se não seria o caso de comprar novo bilhete, pois não teria como comprovar o pagamento. Calmamente, ele respondeu:
– Não faças nada.
– Sim, mas e se me pedirem o bilhete, o que devo fazer?
– Nada, insistiu. Ninguém te pedirá bilhete algum.
– Então, se quiser, posso não pagar, trapacear e viajar de graça?
– Sim, claro.
– Mas como assim?
– Tu que te entendas com tua consciência, concluiu com tranquilidade.
Se você perguntar a uma pessoa se ela é a favor da divulgação de fake news, as famosas notícias falsas, a resposta será um sonoro “não”. Mas há pesquisas comprovando que, se uma fake news for a favor do candidato preferido, o eleitor tende a passar a notícia falsa pra frente. Porque, pela lógica mencionada, “a gente deve levar vantagem em tudo, certo?”
Feio não é trapacear, feio é perder
O poderoso senador Antonio Carlos Magalhães dizia – e essa eu ouvi diretamente da boca dele -– que feio não é fraudar uma eleição, feio é perder uma eleição. De novo: perceba como a lógica é sempre a mesma. Se a fraude me beneficia, vamos em frente. Outro dia, numa viagem a uma cidade próxima a Brasília, contei seis outdoors gigantes com a inscrição “Nós apoiamos Bolsonaro”, com uma foto do capitão-deputado. Se foi ele a patrocinar, cometeu crime eleitoral, por propaganda fora de hora. Se foi alguém para apoiá-lo, cometeu o mesmo crime. Sem falar que outdoors estão proibidos fora ou dentro do período da propaganda, bem como os cartazes e as pichações que antigamente emporcalhavam os muros das cidades. Mas não vi nenhum dos outdoors pintado com alguma mensagem de reprovação, como em outros, de mulheres fazendo propaganda de lingerie e que continham pichações de cunho religioso. Se a pessoa é a favor de Bolsonaro, deixa ele cometer os crimes eleitorais. Mas, se a publicidade agride convicções religiosas, aí admite-se sem dor na consciência o crime de vandalismo das pichações moralistas.
A “naturalização” da prática ilícita tornou-se tão comum que já não provoca nem cócegas na consciência. Até porque, vamos combinar, “importante é a gente levar vantagem em tudo, certo?”