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URGENTE: Substitutivo que será apresentado no Plenário da Câmara, que pode ser votado nesta terça-feira, corrompe as 10 medidas contra corrupção
Veja que, há poucas horas, as 10 medidas receberam moção de apoio de mais de 80 órgãos públicos e entidades de combate à corrupção. Todos esses órgãos e entidades sabem do que precisam para ter um país melhor e apoiam as 10 medidas.
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Agora, esse substitutivo que chegou às minhas mãos e que, segundo se fala, irá ao plenário amanhã para ser apreciado como uma alternativa, acaba com as #10Medidas e até piora o quadro atual. No item (1) abaixo trato dos JABUTIS, com clara tentativa de intimidar MP e PJ, que vêm atuando contra a corrupção, e no item (2) mostro como as 10 Medidas são desfiguradas. Isso me faz acreditar que o substitutivo não encontrará eco no Parlamento e que a Casa do Povo dará ouvidos à sociedade.
Antes de ir ao texto, uma ressalva: reconheço e respeito a legitimidade e soberania do Congresso para debater e votar matérias com ampla liberdade. Isso faz parte do processo político-democrático. A contribuição dos parlamentares no aperfeiçoamento das 10 Medidas, aliás, é fundamental. Também é importante, do mesmo modo, que possamos todos contribuir com as discussões para que o pacote anticorrupção seja melhorado. É nesse sentido que coloco preocupações sobre o texto que chegou às minhas mãos.
1. Primeiro, numa rápida leitura já percebi que o substitutivo traz VÁRIOS JABUTIS:
JABUTI 1 – CAIXA 2: ao mesmo tempo em que é piorada a redação do novo crime de caixa dois, aparece um parágrafo único que tem uma redação perigosa. Ele trata de “caixa 2” de “origem ilícita”. Isso pode ser usado para argumentar na Justiça que PROPINA recebida e usada para fins eleitorais, de modo oculto, não enseja o crime de lavagem de dinheiro, mas sim um crime com pena muito menor, o de “caixa 2”. Essa foi justamente a tese da defesa no Mensalão, a de que não se tratava de corrupção ou lavagem, mas sim de crime de caixa 2. Mudanças da lei penal que favorecem o réu valem para trás. Esse é o mesmo pano de fundo da discussão da anistia: formas de diminuir ou isentar penas por graves crimes praticados. Sei que há argumentos aqui para discordar dessas alegações que réus poderiam usar, mas “gato escaldado tem medo de água fria”. Prefiro buscar a segurança de não ter de enfrentar desnecessariamente esses argumentos e os riscos inerentes ao longo das diversas instâncias judiciais.
JABUTI 2 – PRAZO PARA INVESTIGAR POLÍTICOS: há limitação do tempo de investigação pelo Ministério Público de ilegalidades de políticos (em relação a crimes de caixa 2 e de condutas da lei de eleições).
JABUTI 3 – RISCO DE RETALIAÇÕES E PERSEGUIÇÕES: cria-se a possibilidade de que qualquer partido possa propor ação de improbidade ou ação civil pública. Isso não só abre espaço para retaliações em casos como a Lava Jato, mas também dá margem para uma guerra entre os partidos e com governantes na época de campanhas eleitorais. Esse tipo de ação deve ser de responsabilidade de um órgão imparcial, com agentes sujeitos a regramento administrativo-disciplinar.
JABUTI 4 – CERCEAMENTO DO CONTROLE POPULAR: há um cerceamento da ação popular, usada por cidadãos para fiscalizar governantes. É previsto um risco de condenação ao décuplo das custas. Melhor pensar 2 vezes antes de fiscalizar seu governante!
JABUTI 5 – LEI DA INTIMIDAÇÃO: cria-se crime de responsabilidade de magistrados e membros do Ministério Público, na forma de impeachment (coisa a que nem deputados e senadores estão sujeitos, salvo os presidentes). Um dos crimes, por exemplo, é faltar com o decoro, algo que poderia ser uma simples discussão acalorada numa causa (recentemente, um ministro do STF acusou outro exatamente de faltar com o decoro em meio ao debate). Agora, o pior é que estará nas mãos do investigado processar o investigador. Isso tornará a atividade de investigação e combate à corrupção de poderosos um inferno. É a lei da intimidação.
JABUTI 6 – LEI DA INTIMIDAÇÃO PARTE 2: novamente para intimidar a ação do Ministério Público, torna-se crime a propositura pelo Ministério Público de ação contra um agente público (e não contra cidadão, por que será a diferença?) de “maneira temerária”, com obrigação de indenização por danos materiais, morais e à imagem. Além de isso não ter nada a ver com o pacote anticorrupção, qual o problema disso? O problema é que o nível de exigência de provas para propor uma ação é menor do que o nível para condenar. Por isso, é natural que haja absolvições. A cada absolvição, haverá discussões sobre ser ou não “temerária” a ação. E caso se comprove cabalmente ao longo da ação que o Ministério Público estava errado, a ação foi temerária? E se havia diligências possíveis, mas improváveis, e não foram feitas, a ação foi temerária? Pesquisas no âmbito da epistemologia mostram que sempre é possível pesquisar a realidade mais e que nunca o conhecimento é definitivo. A discussão sobre limites de temeridade, quando ações envolvem poderosos, intimidará a atuação legítima de promotores e procuradores. Seria parecido com punir juízes que “prendem ilegalmente”, simplesmente porque o Tribunal decidiu soltar o ré. Concordo que essa matéria pode ser discutida e merece melhor reflexão, com ampla participação da sociedade e possível aperfeiçoamento da redação, mas não nos 50 minutos do segundo tempo e com um “substitutivo surpresa”, ainda mais no âmbito de um pacote anticorrupção.
A intenção desses últimos JABUTIS é nitidamente intimidar a ação do Ministério Público, o que está dando a entender uma fixação em retaliar. A questão é: qual a ação do Ministério Público ou do Judiciário que mostra que há urgência em reprimir comportamentos especificamente de promotores e juízes? É o combate à corrupção? Se for isso, esses JABUTIS contrabandeiam para as propostas uma série de medidas pró-corrupção.
Precisamos recordar que juízes, promotores e procuradores são responsabilizados em 4 esferas: criminal, civil, de improbidade administrativa e administrativa-disciplinar. Então, por que é difícil punir promotores e juízes corruptos? Pelo mesmo motivo que não se punem outros agentes corruptos, em regra: o sistema não funciona. Para mudar isso que vêm as 10 medidas contra a corrupção e a impunidade. O endurecimento das leis proposto pelas 10 medidas aprovadas pela comissão vale para todos, inclusive promotores e juízes. Por fim, concordamos com o aperfeiçoamento da lei de abuso de autoridade, contudo com ampla discussão social e com uma redação que não dê espaço para o cerceamento da atividade legítima de investigação, processamento e julgamento de crimes.
2. Segundo, o substitutivo DETONA as 10 medidas da sociedade:
A medida que aumenta as penas da corrupção é totalmente desfigurada para ficar inútil. Em vez de novas faixas de penas proporcionais ao valor desviado, passa a variar apenas a pena máxima, quando em nosso direito a pena sempre é próxima à mínima. Mudaram para tudo ficar tudo igual sempre foi: penas baixas para a corrupção.
Sumiram todas as mudanças para agilizar o processo criminal. Agora, o que é mais grave, a prescrição, que é a maior causa de impunidade no Brasil, continua praticamente como é hoje. Você continuará vendo os bandidos que roubam milhões saírem impunes. Além de desaparecer completamente a proposta para ajustar nulidades, mantendo o flanco aberto para a anulação de grandes operações, o crime vai continuar compensando financeiramente.
A medida 10 oferecia dois instrumentos legais, recomendados no mundo, para recuperar o dinheiro desviado. Um desapareceu e o outro foi desfigurado para ficar inútil. Este último é a ação civil de extinção de domínio, que foi condicionada ao fim do processo criminal, quando ela é justamente uma alternativa ao processo penal para quando ele não tem sucesso. Ou seja, o substitutivo matou e enterrou a medida 10 também.
Por fim, duas inovações trazidas pelo Relator da Comissão Especial e aprovada por esta, o whistleblower e o acordo penal, que eram bastante positivas, desapareceram.
3. Por tudo isso, o substitutivo promove, a meu ver, um retrocesso na luta contra a corrupção. Há mais retrocessos do que avanços. Torna mais difícil lutar contra a corrupção, enfraquecendo as Instituições que têm corajosamente enfrentado esse grave problema brasileiro. Ele vira as costas para a esperança da sociedade depositada na melhoria das leis e dos sistemas. Fico contente em não existir nenhum sinal de apoio oficial ao substitutivo e espero que as reflexões postadas possam, de algum modo, contribuir de alguma forma com o debate e a reflexão.
Por outro lado, o relatório aprovado pela comissão especial (e não esse substitutivo surpresa) promove muitos avanços positivos, preservando a maior parte das 10 medidas originais.
Por isso tudo, o mais desejável – e a ser avaliado pelo Parlamento – seria a aprovação, após debate e eventual aperfeiçoamento, do relatório da comissão especial que foi aprovado por unanimidade por 30 Deputados, depois de uma ampla discussão e de um trabalho parlamentar que colheu o depoimento de mais de 100 especialistas. A Comissão promoveu várias alterações no texto, mas manteve o espírito e a maior parte dos avanços que as #10Medidas propuseram, diferente do substitutivo.
Continuamos a depositar nossa confiança no Congresso e a acreditar que hoje, dia da votação das #10Medidas, será um dia que possamos comemorar, na história brasileira, como um dia em que o a Câmara dos Deputados dará um firme passo na direção de um país melhor, com menos corrupção e menos impunidade.
* É procurador da República, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato e idealizador do projeto das dez medidas de combate à corrupção