Nicson Chagas Quirino *
O desalento, a imprecisão conceitual, o relativismo, ou o desconhecimento do processo histórico, estabelecem, de maneira singela e superficial, a construção dos mitos, dos heróis e das catacumbas. Vivemos tempos míticos, em que uma arguta moralidade ortodoxa fixa padrões de comportamento e olhares fincados na sanção, na execração e no opróbrio. Vivemos tempos heroicos, que erigem personagens sensivelmente humanos em arautos de uma única voz de correção e acerto. Vivemos tempos apocalípticos, que enterram biografias, que calam vozes dissonantes e que apelam a um genérico sentimento de “consolação pública”.
Falamos de Justiça e democracia.
É impossível desconhecer a tomada de assalto do Estado (ou pelo menos de sua maior empresa) por um bando de malfeitores. Gente que, por convicção ou caráter, decidiu melhorar de vida à custa do patrimônio alheio. É inegável que um grupo de sindicalistas, antes provectos defensores da igualdade social, tenha se vendido aos bons ventos do ar-condicionado em salas atapetadas, vinhos de boa safra e “misses” internacionais. Claro que tudo isso gera estupor, raiva, desalento.
Mas, daí, defender o atropelo das instituições, hauridas de séculos de dialética social, é medida incorreta, tanto quanto os crimes cometidos. Não é usurpando prerrogativas de uma condição humana afeita à dignidade, à ética e à legalidade que venceremos.
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O certo é que o encarceramento de uns poucos a qualquer custo não elide nem desenrola o nó cultural e civilizatório que nos amarra. Os prisioneiros não são apenas produtos da prevista impunidade. São frutos da oportunidade. De pronto: o que importa não é a lei, mas sua ausência. Explico: todos os atores, sem exceção, valeram-se de uma lei ou de um regime de licitações cujo pretenso rigor normativo somente levou a uma consequência: a promiscuidade. Ante uma legislação esquizofrênica, incapaz de alcançar o resultado que pretende, é melhor sua ausência. Outro exemplo contundente é a Lei da Ficha Limpa. Bela e rigorosa, produziu o quê? Não nos esqueçamos: tantos os executivos quanto os políticos envolvidos passaram sob seu crivo.
Então, o embaralhamento dos conceitos é outro problema. Justiça e Curitiba não é a mesma coisa. Democracia e mídia, também não. Quem discutirá a eficácia e a eficiência da Lava Jato? Entretanto, seu roteiro bem-sucedido nos entrega ao perigo de que os “mocinhos”, ao mirarem os “bandidos”, acabem por destruir a cidadela, feito bang-bang italiano. Calma, o santo é de barro! Há razões para crer que doleiros e suas amantes, “filhinhos de papai” empreiteiros e bêbados errantes em Brasília nos fizeram muito mal. Contudo, estamos na oportunidade de extirpá-los sem fissuras ao arcabouço sociológico que até aqui nos trouxe; e a pior das escolhas seria a reedição de processos inquisitórios que matam bruxas e a um só tempo erigem mártires. Por este mesmo ângulo, o espetáculo da imprensa acerca do tema preocupa. Preocupa porque intimida. Impõe-se como miragem de uma avassaladora unanimidade contra a qual somente os infiéis reagiriam.
Dizem que o protagonismo do Judiciário veio em boa hora. Mas sob que pesos e medidas? Provocado, reage, mas sob que impulsos? O legislado, o interpretado, o vivido? É preciso que o jurídico e o político se afastem. Passou despercebida uma lição do relator da Lava Jato no Supremo: “O juiz não pode gerar o conflito”. Compete a ele desbastá-lo. No campo do relativismo vale tudo. Vale diretor da Petrobras míope, vale senador envergonhado, vale deputado surfista, vale a hipocrisia que nada sabe. E o conjunto, quando autenticado, produz manchetes e contornos irrefutáveis.
O pior, entretanto, é a técnica jurídica substituída por algo inominável, cuja aproximação chamaria de genéricos “fundamentos profiláticos”, os quais, sozinhos, justificam prisões e solturas; foros e prerrogativas; nomeações e demissões. Ilustre-se o descalabro: uma liminar é contestada porque seu prolator foi flagrado numa manifestação na Esplanada dos Ministérios; um ministro de tribunal superior é contestado porque se deixou fotografar no Palácio Presidencial, a libertação do contraventor Carlinhos Cachoeira é contestada porque desembargadores ousaram ter em seus laços de amizade advogados cariocas. Enfim, tempos amargos, cuja primeira vítima é a Ciência do Direito.
É por isso que o velho conhecimento da história recomenda a prudência e a temperança. A arte de furtar, o farisaísmo, o egoísmo, a sede de poder não são invenções brasileiras e corroem boa parte da humanidade ao longo dos séculos. Sobretudo, uma leitura pendular do percurso histórico e político é recomendada. Extremos são maus conselheiros: a guilhotina do terror plantou o autocratismo napoleônico; entre nós, o “mar de lama” lacerdista facilitou o caminho para os tanques de 64. Alto lá! Lembranças tão-só. Aviso para evitar o improviso.
É de Leon Bloy, escritor francês, a célebre frase: “Só há uma tristeza: a de não ser santo”. Retrato de nossa amargura cotidiana de sempre visitarmos a imperfeição. Mas, ao mesmo tempo, síntese da aspiração genuína de esperança. Bloy, católico fervoroso e aguerrido polemista, ao fim da vida chegou a desacreditar na democracia. Algo, certamente, que não nos aflige é essa descrença. Porém, diante do que temos visto, é inevitável concluir que não devemos ter medo de Sérgio Moro. Devemos temer a nós mesmos.
* É advogado e jornalista.