Claudio J. D. Sales e Richard L. Hochstetler *
Nesta semana uma Comissão Mista do Congresso Nacional apreciará o relatório do deputado Júlio Lopes sobre a Medida Provisória 814, texto que trata de questões importantes que precisam ser resolvidas para restaurar a sustentabilidade econômico-financeira tanto do setor elétrico brasileiro quanto da Eletrobras.
A versão original da medida provisória elaborada pelo Poder Executivo tinha como objetivo resolver uma série de questões relacionadas ao fornecimento de energia elétrica nos chamados “Sistemas Isolados”, áreas do Norte do país atendidas pela Eletrobras e que, até pouco tempo, ainda não estavam conectadas ao Sistema Interligado Nacional.
O projeto de lei de conversão apresentado pelo relator mantém essas propostas – com algumas modificações – e propõe diversas outras. A leitura cuidadosa do projeto permite concluir que nem todas as proposições merecem ser aprovadas, mas algumas são muito importantes para o robustecimento do setor elétrico e a redução de custos para o consumidor.
Destacamos aqui, entre várias, três questões contidas no projeto de lei de conversão que deveriam ser aprovadas para mitigar riscos e aumentar a eficiência do setor: (i) medidas para eximir as empresas de energia elétrica controladas por estrangeiros das restrições impostas sobre a aquisição de terras rurais; (ii) medidas para viabilizar o cumprimento dos contratos de fornecimento de gás natural para as termelétricas integrantes do Programa Prioritário de Termelétricas; e (iii) medidas para blindar as usinas hidrelétricas de exposições ao chamado “Mercado de Curto Prazo” provocadas por fatores espúrios e não gerenciáveis por estas usinas.
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A primeira questão visa a proporcionar mais segurança jurídica para os investimentos em ativos elétricos realizados por empresas controladas por estrangeiros. A legislação brasileira estabelece uma série de restrições para a aquisição de terras em áreas rurais por estrangeiros, e é por isso que a aprovação do texto da MP 814 que trata deste tema é importante: sem deter a posse do terreno, torna-se muito arriscada a realização de investimentos irreversíveis em instalações elétricas. Isto porque se o proprietário (não estrangeiro) decidir utilizar o terreno para outra finalidade antes da amortização integral do investimento feito pelo empreendedor estrangeiro em ativos elétricos, este último terá prejuízos vultosos e irrecuperáveis.
PublicidadeA aquisição de terras por estrangeiros para a instalações de energia elétrica não ameaça a soberania nacional, pois o interesse público da população brasileira é resguardado pela regulação feita pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A aprovação do texto que trata deste tema no projeto de lei de conversão da MP 814 – que propõe a não aplicabilidade das restrições previstas na Lei 5.709 de 1971 – mitiga riscos ao investidor e contribui para a modicidade tarifária ao, por exemplo, potencializar a concorrência nos leilões.
A segunda questão refere-se à solução para o fornecimento de gás natural às termelétricas do Programa Prioritário de Termelétricas (PPT). Devido à elevação do custo do gás natural, tornou-se mais econômico para a Petrobras pagar as multas previstas no contrato do que fornecer o gás natural ao preço vigente. No entanto, esta decisão empresarial da Petrobras pode levar à eventual desativação (ou descomissionamento) dessas usinas, o que, por sua vez, forçaria o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a recorrer a usinas de maior custo variável unitário para atendimento da demanda, situação que pode ser muito mais cara para o consumidor. Este cenário “perde-perde” (perde o consumidor, que pagará tarifa mais cara, e perde o proprietário da usina) pode ser evitado com a cobrança de um encargo tarifário para cobrir a diferença entre o preço do gás definido nos contratos do PPT e o preço do gás no mercado, mas apenas pelo prazo remanescente dos contratos.
A terceira – e não menos importante – questão a ser aprovada se refere à preservação do bom funcionamento do chamado “Mecanismo de Realocação de Energia (MRE)”.
O MRE foi instituído em 1998, por meio do Decreto 2.655, com o objetivo de promover o compartilhamento do risco hidrológico entre usinas hidrelétricas. Seu objetivo era mitigar os riscos das hidrelétricas por meio de uma espécie de “condomínio” composto por estas usinas, de tal forma que quando algumas gerassem menos eletricidade devido à falta de chuvas, outras usinas compensariam esta falta. O problema é que não se cogitava, à época, que algum dia o MRE poderia se tornar uma fonte de risco sistêmico para os geradores hidrelétricos, e é justamente isso o que ocorre hoje.
Nos últimos anos, a energia atribuída à maioria das hidrelétricas pertencentes ao MRE tem sido muito inferior à média histórica. Parte dessa queda é explicada pela hidrologia desfavorável, mas outra parte decorre de fatores alheios à hidrologia e à gestão dos geradores hidrelétricos.
A geração hidrelétrica tem sido crescentemente deslocada por outros fatores, tais como: (i) o acionamento de termelétricas “fora da ordem de mérito” previsto pelos programas computacionais oficiais que deveriam estabelecer o despacho ótimo; (ii) a importação de energia de outros países; e (iii) a redução da geração hidrelétrica por causa de restrições ao escoamento de sua energia devido a atrasos na construção de instalações de transmissão.
Como os geradores não têm autonomia sobre quando e quanto suas usinas são acionadas – o ONS é a autoridade que decide quais usinas operam, quando e com qual intensidade –, é absolutamente essencial que as regras que regem a operação e o rateio da energia produzida pelas hidrelétricas sejam justas, transparentes e previsíveis. Como isso não tem ocorrido, não é surpreendente que a questão tenha sido judicializada.
O efeito disto foi uma quase paralisia do chamado “Mercado de Curto Prazo”, ambiente em que são realizadas as liquidações financeiras de energia elétrica. Na última liquidação efetuada em fevereiro de 2018 pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), apenas R$ 0,8 bilhão dos R$ 8,1 bilhões contabilizados foram efetivamente pagos. A
liquidação de R$ 6,2 bilhões está suspensa por liminares, R$ 0,2 bilhão está suspenso por Despacho da Aneel e R$ 0,9 bilhão por inadimplência. Resultado: apenas 4,8% do montante devido foi efetivamente recebido pela grande maioria dos credores. É uma situação calamitosa que ameaça a própria sustentabilidade do mercado de eletricidade nacional.
As propostas do relator (acatando sugestões de quatro emendas que versaram sobre a questão) são boas, pois buscam restabelecer a lógica original do MRE ao compensar os geradores hidrelétricos pelos seguintes efeitos: (i) geração “fora da ordem de mérito”; (ii) importação de energia de outros países sem Garantia Física; (iii) produção hidrelétrica inviabilizada por restrições ao escoamento ocasionadas por atrasos na implantação de instalações de transmissão; e (iv) antecipação de Garantia Física atribuída a hidrelétricas ainda em motorização.
É importantíssimo ressaltar que a compensação acima proposta para o ambiente do MRE não terá efeito sobre as tarifas dos consumidores, uma vez que o ajuste seria realizado por meio da extensão do prazo de outorga das concessões hidrelétricas.
A aprovação das três propostas – aquisição de terras por estrangeiros, solução para o gás natural das termelétricas do PPT e a desjudicialização do MRE – contribuirá para a atração de investimentos no setor elétrico brasileiro e para a redução da tarifa de eletricidade paga pelos consumidores.
* Presidente e diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil, respectivamente. Atuando no setor elétrico há mais de 20 anos, Claudio é engenheiro mecânico e industrial e frequenta o President´s Management Program da Harvard University. Richard é doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e graduado em Economia pelo Goshen College (EUA).
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