Este texto foi publicado originalmente na revista Cult. Devido à falta de espaço tive de cortar alguns trechos. Abaixo, a versão na íntegra:
Lugones “deu-se a morte” no final dos anos 30 do século passado. Acreditei que ele era uma obsessão de Borges, mas me enganei. Na minha cabeça, não fazia a mínima diferença se o escritor suicida rondava a calle Rodrigues Peña ou se ele havia se transformado num tigre que apavorava Borges a partir do reflexo de um espelho falso. Isso apesar de sabermos que o autor de As forças estranhas nasceu em 1874 e que esse dado cronológico não impediria Lugones de ter sido influenciado por ninguém menos que – pasmem – o próprio Borges, que contava sete anos de idade quando o livro supra foi publicado. Diante desse quadro, que diferença faz se Lugones era uma metáfora de Borges ou se escreveu um livro chamado As forças estranhas?
Que diferença faz se a busca do verbo ancestral é matéria-prima de “Yzur”, o conto perfeito? Talvez a diferença consista no fato de que Lugones não procurava o grito primevo em Deus, mas num macaco. Tem lógica. Portanto, Lugones faz toda a diferença: um homem que poderia ter sido um Darwin caso engendrasse simplórios homos-sapiens no lugar de unicórnios e macacos chimpanzés transcendentais.
Vamos ao conto:
“Comprei o macaco no leilão de um circo falido (…) li nem sei onde que os naturais de Java atribuíam a falta de linguagem articulada nos macacos à abstenção, não à incapacidade. ‘Não falam’, diziam, ‘para que não os façam trabalhar’. Semelhante idéia, nada profunda, acabou por me preocupar até se converter neste postulado antropológico: os macacos foram homens que, por uma ou outra razão, deixaram de falar (…)”.
A partir daí, o autor faz algumas conexões “técnico-científicas” para dar um ar de civilidade ao seu narrador. Nada mais do que um truque para disfarçar a literatura que “vai comendo por baixo”. Ou melhor, para disfarçar o humano que existe em conluio com o macaco, e que se manifesta através de pistas falsas, e do positivismo da época. Leopoldo Lugones é um caso único de positivista esotérico, se é que isso é possível.
Jorge Luis Borges, malandramente – e dono de um ouvido muito mais apurado – soube prescindir do recheio “técnico-científico” de Lugones, que, aqui entre nós, às vezes, é meio cansativo. Um parêntese. Na virada do século XIX, Lugones tinha 26 anos. Ora, estamos falando do tempo das grandes invenções e de um inconsciente perverso que estava na iminência de aflorar e decretar o final de carreira das musas, das sílfides e dos silfos – estes últimos também conhecidos como gênios do ar. Não por acaso, na mesma época, Santos-Dumont, o pai das libélulas, batizou seu avião mais delicado de Demoiselle. Se me permitem uma licença poética dentro de um parêntese, eu diria que foi Freud quem matou Dumont, mas essa história e o modernismo-pererê que, 1/4 de século depois seria (e ainda é…) praticado aqui em nossas plagas, é outra história e outro parêntese.
Voltando ao conto.
Yzur, o macaco, agia e sentenciava conforme o que lhe ditavam seus instintos de sobrevivência, porém – aparentemente – não correspondia aos apelos mais primitivos de seu amo, o esforçado cientista que empenhava-se em lhe corrigir a embocadura e ensinar vogais e consoantes. Aqui temos mais um truque. Muito embora o narrador desqualifique a tese que dá o start no conto “semelhante idéia, nada profunda, acabou por me preocupar (…) etc “, mesmo assim… Lugones induz o leitor a acreditar que o macaco não correspondia aos ensinamentos do cientista por mero capricho. O falso veredicto confirma-se à sombra de uma figueira, quando o cozinheiro do cientista-adestrador supreende Yzur a tagarelar consigo mesmo. Ao ser cobrado, o cientista consegue apenas algumas piscadelas hipócritas e um certo vislumbre de ironia na “azougada ubiquidade de sua caretas”. Contrariado, depois de três anos de dedicação a ensinar a língua dos homens para o símio, desce-lhe o sarrafo. Eu faria o mesmo.
O que era ubiquidade e desdém vira tristeza e melancolia. O único efeito do “corretivo” resultou em lágrimas e num silêncio absoluto que excluiria até os gemidos de Yzur. Instala-se uma profunda depressão no macaco, que se reflete enviesada no cientista-adestrador. Movido a remorso e culpa, sobretudo porque sentia que o macaco podia levar o segredo da fala para a tumba, o cientista incorpora a promessa de morte do macaco. Mesmo assim, não desiste: Yzur – conforme relato do cozinheiro – ruminava “verdadeiras palavras” à sombra da tal figueira.
Os olhos do macaco enchiam-se de lágrimas cada vez que o amo tentava lhe ensinar a língua dos homens. Yzur fazia apenas acompanhar as lições, assentia, fechava as pálpebras e chorava. E só. O resto era uma espécie de condescendência piedosa que o chimpanzé transmitia ao amo. Yzur sentia na pele aquilo que os fanáticos chamam de “evolução”, ou seja, o “método científico” reiterado, a intimidação, o exaspero e a vaidade contrariada, sentia a “evolução humana” na própria carne.
Assim, Yzur adquire, aos olhos do dono, a importância de uma pessoa – e aqui é fundamental sublinhar que essa empatia floresce na iminência de sua morte, na delicadeza sugerida pelo sofrimento.
Que bárbara injustiça, sugere Lugones, teria forçado o suicídio intelectual e o silêncio dos antigos habitantes da selva? O cientista remoe a aflição do escritor e, ao mesmo tempo, inclui-se inopinadamente no processo de evolução de sua própria experiência. Nesse ponto, o “homem civilizado” entra em estado de convalescença e quase se humaniza, mas não se entrega: ele tem a certeza de que o macaco esconde o tesouro da fala. Yzur passa da condição de experiência para a condição de amigo, porém um amigo doente.
Yzur – constata o cientista – estava doente de inteligência e de dor. Aquele macaco era o negativo de Darwin, que estranhamente confirmava a tese da evolução. Todavia, uma evolução que andava para trás – vale dizer: a diferença é que o macaco “agia” dessa maneira ou entregava os pontos, por opção!, e não por instinto.
Evolução sim, mergulhada no abismo da barbárie fundamental. Por trás dos infortúnios da evolução – tese de Lugones – é que os macacos romperam o vínculo da palavra com o inimigo e, desse modo, refugiaram-se para sempre na noite da animalidade. O cientista – apesar do sofrimento do “amigo” – pressentia que estava muito perto de conjurar e revolver, através da palavra, a antiga alma simiana, mas contra a tentação que iria violar as trevas da animalidade opunha-se a memória ancestral: “difundida na espécie sob um instinto de horror, que erguia idade sobre idade como uma muralha”. A essa altura, o leitor é cúmplice do macaco em sua angústia terminal, e refém de Lugones, de modo que é quase impossível escapar a indagação: “falar para quê?”
Yzur agoniza, mas não perde a consciência. Lugones descreve essa agonia em dois parágrafos. A meu ver, são os dois parágrafos mais pungentes da história da literatura. Eu fico constrangido em descrevê-los aqui. Retive a imagem da eternidade – quando as espécies se reconciliam – na expressão agônica de Yzur, “o velho mulato triste”. No último parágrafo, a tese inicial do livro é virada de cabeça para baixo, e Yzur, num ato sublime que mistura desespero, compaixão e humanidade, em seu último e derradeiro momento, manifesta-se.
“Como explicar o tom de uma voz que permaneceu sufocada por dez mil séculos?” Yzur entoa palavras de servidão. Todavia uma servidão que é sinônimo de subversão. Eu, aqui, não me sentiria àvontade para reproduzir as palavras de Yzur. Na verdade, Lugones nos diminui a ponto de somente as lágrimas se justificarem: leitores e adestradores somos derrotados moralmente pelo macaco.
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O conto “Yzur” faz parte do livro As forças estranhas. No mesmo volume, ainda temos a compilação de Contos Fatais. Editora Globo, 2009.
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