Paulo Kramer *
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Muito embora o segundo discurso de posse do republicano George W. Bush – W – não lhe tenha feito referência direta, o legado do democrata WW – Woodrow Wilson (1858-1924), que governou a América entre 1913 e 1921 – reverberou em praticamente cada linha do seu pronunciamento. “Existe uma única força na história capaz de romper o jugo do ódio e do ressentimento e desmascarar as farsas dos tiranos… e esta é a força da liberdade humana”. “A sobrevivência da liberdade em nossa terra depende, cada vez mais, do sucesso da liberdade em outras terras”. “Os interesses vitais da América e nossas crenças mais arraigadas agora são uma coisa só…” Assim se pronunciou W quase um século depois de WW ter sacudido seu país do longo sono isolacionista para abraçar a causa aliada na Primeira Guerra Mundial (1914-18) e investir em uma nova arquitetura de ordem internacional pautada nos ideais da liberal-democracia. Em discurso ao Congresso datado de 8 de janeiro de 1918, na reta final da guerra, Wilson apresentou seu famoso programa de Quatorze Pontos, cujo carro-chefe era a proposta da futura Sociedade (ou Liga) das Nações. No fim daquele ano, depois da rendição alemã, com a derrota do exército do kaiser (imperador) Guilherme II, WW viajou a Paris para a abertura da conferência de paz, que redundaria no tratado de Versalhes em 1919. No front doméstico, porém, o Partido Republicano, histórico inimigo de envolvimentos extracontinentais, torpedeou o projeto da Sociedade das Nações no Senado, além de recusar-se a ratificar Versalhes. Terminado o segundo mandato de Wilson, os democratas só teriam nova chance de pôr em prática a visão globalista da política externa americana com o presidente Franklin D. Roosevelt (1882-1945, eleito em 1932 e reconduzido em 1936, 1940 e 1944), graças à oportunidade histórica aberta pela entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, em resposta ao ataque japonês de surpresa a Pearl Harbor, em dezembro de 1941. O vice e sucessor de Roosevelt, Harry S. Truman (1884-1972), conferiria uma base finalmente duradoura, irreversível, à posição internacionalista. Ele consolidou os compromissos dos Estados Unidos no mundo tanto no campo econômico – a exemplo do Plano Marshall, programa de financiamentos a fundo perdido para a recuperação das economias européias devastadas pela guerra e, por isso, consideradas alvos preferenciais da subversão filo-soviética – como na área militar, caso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e de uma série de pactos de defesa na Ásia e na América Latina. A segurança dos aliados da América foi garantida pelo poder dissuasório do arsenal nuclear sob o comando dos Estados Unidos contra uma possível invasão do Exército Vermelho, tradicionalmente superior ao Ocidente em termos de forças convencionais. Tudo em nome da contenção (containment) da ameaça comunista. Essa estratégia foi a espinha dorsal da política externa americana até o fim da Guerra Fria, precipitado pela queda do Muro de Berlim e o colapso do império soviético. Já nos primeiros anos da Guerra Fria, o isolacionismo republicano caiu na defensiva, com o Grand Old Party (GOP) rachado entre uma maioria de recém-convertidos ao contencionismo globalista democrata e um punhado de teimosos devotos do esplêndido isolamento, fiéis ao “Senhor Republicano”, como gostava de ser chamado o senador por Ohio Robert A. Taft (1889-1953), voto vencido na sua tenaz oposição ao ingresso dos Estados Unidos na luta contra o nazifascismo e, logo depois, ao Plano Marshall e à Otan. Aferrado ao tradicional catecismo republicano de governo limitado, impostos baixos e despesas públicas sob rígido controle, Taft alegava que os custos financeiros e as exigências militares do containment intensificariam a opressão do contribuinte e abririam uma era de gigantismo estatal sem precedentes. Anos mais tarde, Dwight D. Eisenhower (1890-1969, eleito em 1952 e reeleito em 1956), republicano, sim, mas convertido ao internacionalismo wilson-rooseveltiano e detentor de impecáveis credenciais nesse sentido por ter sido comandante supremo das forças aliadas na Europa Ocidental durante a Segunda Guerra, acabaria dando certa razão a Taft. Aproveitou seu discurso de despedida da Casa Branca para alertar os políticos e o povo americanos contra os riscos à liberdade acarretados pelo crescimento sem freios do “complexo industrial-militar” Nunca a dimensão idealista-missionária do wilsonianismo esteve tão em baixa quanto na presidência de outro republicano, Richard M. Nixon (1913-1994), cujo segundo mandato, conquistado nas eleições de 1972, chegaria a um dramático fim dois anos depois, em razão de renúncia diante da forte campanha pelo seu impedimento, na esteira do escândalo Watergate (qualquer dia, contarei essa história aos leitores mais jovens!). Em dobradinha com o assessor para Segurança Nacional e depois secretário de Estado, Henry A. Kissinger, Nixon, a partir de 1971, implementou uma ousada estratégia de controle da corrida armamentista nuclear, negociando a détente (distensão) com o velho rival soviético, além de promover um degelo nas relações com a República Popular da China. A levar fé nos esquemas classificatórios dos manuais de política externa e relações internacionais, o globalismo de Wilson, metabolizado por Roosevelt e Truman, refletiu um amálgama das teorias idealista e liberal: a primeira preocupada em alicerçar a ordem mundial sobre os princípios da ética e do direito; a segunda interessada na produção de regras e instituições (“regimes”, em linguagem acadêmica) em apoio à livre circulação de bens, pessoas e conhecimentos. Já Kissinger, alemão de nascimento e professor de ciência política em Harvard, cultivou uma política baseada no realismo, teoria sem paciência para as utopias moralistas de bondade essencial do ser humano e desencantada de qualquer sonho de harmonia universal. Na lição do maior pensador realista contemporâneo, outro alemão de origem judaica, professor da Universidade de Chicago, Hans J. Morgenthau (1904-1980), os interesses supremos dos Estados nacionais são poder e segurança. A paz depende da lucidez da ação diplomática e, acima de tudo, do equilíbrio das relações de força no cenário internacional (a propósito, em boa hora, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Ministério das Relações Exteriores, a Editora da Universidade de Brasília e a Imprensa Oficial de S. Paulo se associaram na publicação em português do clássico de Morgenthau, A política entre as nações, bíblia do realismo). Contudo, em parte graças a um realinhamento estratégico e ideológico posto em marcha pela presidência republicana de Ronald W. Reagan (1911-2004, eleito em 1980, reeleito em 1984), o atual inquilino da Casa Branca, W, não se identifica com a herança de frio pragmatismo no uso da força e, para muitos críticos neoconservadores, de amoralidade da realpolitik kissingeriana. Do idealismo wilsoniano, Bush abraçou a convicção de que o interesse da América deve ser santificado por princípios de cunho ético, até mesmo religioso, a começar por um zeloso culto à liberdade, tanto na “nossa terra” quanto “em outras terras”, depois que os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001 destruíram as perspectivas iniciais de um primeiro mandato que havia começado sob a égide de um aparente neo-isolacionismo. Em série, vieram a destruição do regime talibã no Afeganistão, a derrubada de Saddam Hussein e a realização, sob tiros e bombas, de eleições à assembléia constituinte iraquiana. Para horror, aliás, das ditaduras vizinhas, afeitas à vista grossa e aos afagos de Washington, e também para beicinhos de nojo da quase totalidade da intelligentsia ao redor do planeta. Neste ponto, cabem duas importantes ressalvas. Em primeiro lugar, como prova o rechaço ao Protocolo de Quioto e à proposta de um Tribunal Penal Internacional, a apropriação bushiana do wilsonianismo é modificada por uma disposição realista a confiar na força, mais que no direito, para a solução dos problemas internacionais e a concretização global dos ideais de liberdade e democracia. Trocando em miúdos: na doutrina Bush, a “porção idealista”, de propagação universal da boa nova democrática, convive com a “porção realista” de uma nova estratégia de segurança nacional apoiada em ataques preventivos contra a ameaça não-convencional de redes terroristas transnacionais. Segundo: o realismo clássico, avesso a cruzadas messiânicas, está vivo em Washington e se posiciona para ampliar seu espaço de poder e influência no processo decisório. Nesse começo de segundo mandato, seus partidários emitem sinais de renovada vitalidade, como prova o recente manifesto da Coalizão para uma Política Externa Realista, em prol do fim do conflito Israel/Palestina como condição para o fortalecimento da segurança nacional americana (veja www.realisticforeignpolicy.org, a primeira edição de 2005 da revista The Economist), exibindo as assinaturas de sólidas figuras do establishment, tais como o cientista político de Harvard e autor de consagrado livro O choque de civilizações (Objetiva, 1997), Samuel P. Huntington, e o ex-assessor especial do governo Reagan Doug Bandow. Outro sinal: a ex-assessora de Segurança Nacional e nova secretária de Estado, Condolezza Rice, escolheu como seu número dois o ex-representante comercial Robert Zoellick, arquétipo do negociador realista, ao mesmo tempo em que afastou o responsável pela área de controle de armamentos, John Bolton, um protegido do vice-presidente Dick Cheney, que, paradoxalmente, não concorda nem um pouco em limitar o poderio bélico americano. Confesso que, a princípio, tencionava anexar a este artigo uma lista de sugestões de leitura para os jovens aspirantes ao Instituto Rio Branco. Mas logo desisti, lembrando que a maioria dos grandes textos sobre relações internacionais e história da política externa dos Estados Unidos está em inglês, língua que o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e o seu secretário-geral, Samuel Pinheiro Guimarães, consideram pouco relevante para a diplomacia brasileira.
(*) Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e analista da Kramer & Ornelas – Consultoria. |
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