Bezerra Couto*
Essa história de esquerda e direita faz diferença pra mim, ao contrário do que acontece com o Lula… vocês lembram, no final do ano passado, ele sacramentou o adeus às esquerdas ao declarar: “Se você conhece uma pessoa muito idosa que seja de esquerda, é porque ela está com problemas. E se você conhece uma pessoa muito nova que é de direita, ela também está com problemas”.
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Acho que comigo foi mais ou menos o contrário. Novinho da silva, entreguei minha alma ao capitalismo pra garantir o mínimo de conforto pra mim mesmo e os meus. Em busca, no fundo, de liberdade, virei um pequeno capitalista. Sócio menor, entenda-se, da festa burguesa.
Vendendo apartamentos, lotes e casas, planejando e administrando pequenos projetos imobiliários, às vezes também enrolando, exagerando, mentindo descaradamente, que sem teatro não há negócio. E depois, felizaço, escolhendo carro novo na loja. Tenta entender: procurei deixar ideologia de lado, e acabei assumindo práticas típicas do mundo coloridamente consumista esculpido pela direita mais selvagem, essa que mantém sob suas rédeas a grana que move o planeta. E votava contra: em partidos de esquerda ou nulo.
Depois que cheguei aqui, neste apê classe média duramente pago, achei que tava bom. E reencontrei os anarco-sonhos dos tempos de faculdade, Bakunin, Manoel Bandeira, Roberto Freire (o terapeuta anarquista, não o atucanado político do PPS), Rosinha Luxemburgo, George Orwell, Albert Camus, Ana Cristina César, uma misturada dos diabos. Eu era PT e ao mesmo tempo não era porque me sentia à esquerda do partido do Lula, e a noção de partido me incomodava. Sonhava com a revolução, mas detestava a idéia da vanguarda leninista. E, já naquele tempo, era mais arte que ciência, mais sol que noite, mais pássaro que soldado.
O fato de não ter patrão há vários anos, e conseguir sobreviver assim, trouxe de volta a possibilidade de alimentar o velho impulso de dizer não, de botar um ponto de interrogação depois de ouvir algo tido como “Verdade” – Verdade assim: com maiúscula e num altar banhado a ouro. Tenho impressão que nada é mais de esquerda do que questionar “verdades”, com maiúscula ou não, mas claro que há controvérsias.
No Brasil, sabemos todos, ninguém diz que é de direita. Menos meu pai. Ele diz que é, explica porquê, e demonstra uma serenidade que é muito mais convincente do que todos os seus argumentos, que costumam ser de um absurdo completo. Fico rindo e beijo meu velho, reparando que ele tá cada vez mais velho. Mas todo mundo que se julga de esquerda tem uma visão muito própria do que isso significa. Suspeito que, na maioria dos casos, é uma visão não tão pensada, não tão cristalizada assim. Tem mais a ver com um sentimento: o desejo de viver num mundo em que as injustiças e a exclusão social não sejam a tônica.
Tudo o mais é divergência entre as pessoas que se supõem de esquerda. Há esquerdas pra todos os gostos e desgostos. Alguns imaginam que ser de esquerda é apoiar alegremente Hugo Chávez, Fidel Castro e Evo Morales em sua cruzada antiimperialista contra aquela unanimidade nefanda chamada Bush. Outros, que é cobrar um bom emprego em troca de anos de militância (no PT ou nos seus satélites, tipo PCdoB, PSB). Utopias e sub-utopias várias, de origem marxista, anarquista ou social-democrata, continuam vagando por aí, inspirando gentes e credos.
Falo agora o que é ser de esquerda pra mim. Além da já citada vocação pra questionar, o pensamento e a prática de esquerda que me atraem sintetizam a defesa das liberdades individuais com a justiça social e a imprescindível presença da inteligência, sem a qual a civilização dá lugar à barbárie. Daí o perigo. A direita em geral não descarta a inteligência, mas tem o hábito de salpicá-la com um derivado safado dela, a esperteza. Do lado das esquerdas, cá pra nós, um pouco mais de inteligência, assim como de coragem moral, fariam muito bem à saúde.
Ser de esquerda hoje, ouso viajar, envolve: ter consciência ambiental, economizar água, limpar o seu lixo, respeitar diferenças, enfrentar a idiotice neoliberal, exercer vigilância permanente sobre os políticos e as grandes corporações, apoiar iniciativas solidárias, desconfiar dos velhos discursos de esquerda, protestar contra as velhas práticas de esquerda (oportunismo, estatismo, peleguismo, burocratismo, pedantismo, entre tantas mais), desafinar o coro ególatra que marca nossos tempos, alargar os limites da democracia burguesa, para que haja algum espaço pro povão viver legal e ter voz pra valer dentro dela… e entender que, mais importante que cultivar o mito da eterna promessa da revolução socialista, é agir no aqui-agora para melhorar a existência de quem tá do lado de fora do Bar Brasil.
Parei pra botar o Breno (meu filho de dez anos) pra dormir e voltei pensando se ele vai ser de direita ou de esquerda aos 60 anos. E eu, que to chegando nos 40, vejo de repente que direita e esquerda são mais do que palavras, ideologias, referências políticas. São também estados de espírito. Tem dia que acordo super de direita, preocupado com contas a pagar e a receber, e contabilizo progressos materiais, e refaço planos financeiros, e vou à luta atrás do vil metal, de terno e gravata (o que detesto) e ar yuppie. Aí, no trabalho, na rua, vendo TV, na internet, qualquer lance, qualquer notícia faz meu sangue de esquerda ferver, e rogo pragas contra meia dúzia de abutres, e sonho que posso fazer alguma coisa e me vêm à cabeça Imagine, de John Lennon, e me comovo fácil e fantasio um socialismo ao som de Roberto Carlos, e Isabela diz vem dormir, meu bem, tá tarde, e vou, e lembro que ela adora dizer que eu sou brega, e sou mesmo. Brega e, ao meu modo, de esquerda.
Mas, vem cá: e você? É de esquerda?