Franz Kafka (como se o improvável pudesse ser verossímil)
Marcelo Mirisola*
Franz Kafka era filho de uma típica família judia de classe média. Foi um escritor que se notabilizou por sacanear o Pai e dar a notícia de um tempo futuro claustrofóbico e falecido comum a todos os outros tempos, antes e depois dele. Kafka pediu ao melhor amigo e testamenteiro que queimasse sua obra porque, na verdade, queria vê-la preservada, caso contrário, ele mesmo teria providenciado uma bela fogueira. Não há, portanto, que se falar
Para chegar a Kafka terei de fazer um breve preâmbulo e passar por Jorge Luis Borges. Vou tentar – tarefa difícil, reconheço – não aborrecê-los.
Pois bem. Jorge Luis Borges dá as pistas de Kafka num texto que consta do livro Outras Inquisições cujo título é Kafka e seus precursores. Nesse texto fica bem clara a intenção de Borges. Ele queria crescer nas costas de Kafka, e – a meu ver – conseguiu muito mais que isso. Agigantou-se e poupou-me um bocado de trabalho. Borges confessa que de início pensava que Kafka fosse tão singular como a “fênix das loas retóricas”. Mas o argentino era um cricri e – como já adiantei – pessimamente intencionado. Correu atrás. E achou vários elementos de distintas épocas e diversas literaturas que comprovariam que Kafka não era tão original assim.
A qualidade do autor de O Processo, como veremos em seguida, era – segundo Borges – entre tantos volteios e enigmas e paradoxos ao redor de si mesmo, fazer o próprio argentino agigantar-se.
Mas isso Borges não registrou porque não era besta, apenas sugeriu que a luz de Kafka comprometeria não somente os autores que o copiariam, mas aqueles que o precederam, num curioso reflexo às avessas que, no final das contas, o refletiria, Borges, acima de tudo e de todos. Vou citar os exemplos de J. L. B. para apontar um registro que o argentino deixou de fora. A partir daí puxarei deliberadamente a sardinha para o meu lado, e chegarei afinal onde pretendo: num lugar chamado “Franz Kafka”.
Ao argentino: em primeiro lugar, ele associa Kafka a Zenão, aquele do famoso paradoxo. Não me interessa, aqui, explicar o paradoxo. Quem quiser que vá pesquisar no Google. Minha intenção é seguir as pistas do argentino (que são quatro, incluído esse paradoxo) para chegar ao quinto registro, que Borges – repito – deixou escapar. O segundo registro de Borges fala da coincidência do apólogo (animais dando lição de moral) de Han Yu e o tom usado por Franz Kafka em seus livros: algo no ar que sugeriria a presença de uma serpente disfarçada pronta a dar o bote, bem na nossa frente e claramente irreconhecível. No caso de Han Yu a serpente era um unicórnio. Borges não nos explica onde encontrou esse unicórnio na obra de Kafka, fala apenas numa “coincidência de tons”. Aqui, abro um parêntese, faço um alerta e uma confissão. E digo que o procedimento que consiste em deixar as coisas no ar para não resgatá-las (ou dar um bote fraudulento) é típico do argentino: ele é que é o unicórnio de si mesmo, a falsa serpente. Agora fecho o parêntese, e confesso: eu gosto das picaretagens e associações desse Borges. Se ele quisesse, poderia ter sido um Freud, mas optou pela ficção – o que, a meu ver, o fez muito mais crível.
Vamos em frente.
O terceiro registro do argentino aproxima Kafka de Kiekegaard. Ele diz que ambos praticavam parábolas religiosas de temas contemporâneos e burgueses. E dá o exemplo do falsificador que, vigiado incessantemente, examina as cédulas do banco da Inglaterra. Borges dá esse exemplo para sugerir que Deus fez a mesma coisa com Kiekegaard, ou seja, teria lhe encomendado uma missão muito especial sabendo que o filósofo era afeito ao mal. Nem é preciso dizer que Borges desqualifica elegantemente tanto Kafka como Kiekegaard para privilegiar seu ponto de vista. É ele, afinal, o observador suspeito e o observado. Portanto, agora que provou que é mais do que Deus, o argentino matreiro segue em frente, e vai fazendo suas analogias, uma mais bem elaborada e convincente que a outra. Eu, aqui com os meus botões, duvido muito que Kafka fosse tão engenhoso e duvido também que pudesse desconfiar que era assim tão banal a ponto de influenciar seus precursores: essa é a tese de Borges. Coroada, diga-se de passagem, quando encerra o raciocínio falando das “idiossincrasias” do autor que sacaneava o pai (o exemplo e a sacanagem, agora, são meus). Afirma Borges: “Se não me engano, os heterogêneos textos que enumerei parecem-se a Kafka; se não me engano, nem todos se parecem entre si. Este último fato é mais significativo. Em cada um desses textos, em maior ou menor grau, encontra-se a idiossincrasia de Kafka, mas, se ele não tivesse escrito, não a perceberíamos; vale dizer, não existiria”.
Logo em seguida, cita um poema “profético” de Robert Browning e diz que nossa leitura de Kafka – hoje – “afina e desvia sensivelmente a leitura desse poema”. E arremata dizendo que deveríamos tentar purificar o termo “precursor” de toda conotação de polêmica ou rivalidade. O fato – eis a chave de ouro –: “É que todo escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro”.
Uma pergunta: a idiossincrasia apontada por Borges é apenas um fato corriqueiro que escapou aos outros autores… ou seria uma invenção de Borges com o intuito de jogar Kafka na vala comum? Quem, senão Borges, se destacaria com olímpica diferença nessa vala comum? E por quê?
Ora, porque Borges foi o primeiro a existir nesse lugar. Vejam bem: Borges não se inclui nesse “lugar” nem tampouco se permite contaminar como os outros autores, mas existe a partir de.
Depois disso, é fácil e elegante dizer que esse lugar aconteceu no passado e existirá no futuro em conseqüência da iluminação de fulano ou sicrano. Mas, nas entrelinhas, o que o argentino quer dizer é o seguinte: o lugar é de todos, porém eu cheguei primeiro. Portanto, tenho a posse.
Assim, Borges elimina qualquer possibilidade de polêmicas e rivalidades. Como se dissesse: vocês não têm escolhas, se quiserem vicejar, aqui, serão meus inquilinos eternos. Kafka é meu capanga e guardião, alguém aí vai me encarar?
Bem, aqui eu entro. E aponto o quinto registro esquecido por Borges: o pesadelo. Antes de prosseguir, quero dizer que comecei a ler e escrever no começo dos noventa, em plena era Collor. Não conhecia nada de literatura, e tinha lido meia dúzia de livros chatíssimos obrigado pelo vestibular. Kafka, para mim, era algo que remetia a um espeto de carne moída. Eu era um xucro, e estava cansado da faculdade de direito – e, sobretudo, não sabia o que ia fazer da vida. Em suma, um cara normal e com um futuro promissor pela frente. Tinha até uma namorada loirinha, a Karen.
De vez em quando visitava a biblioteca da faculdade. Numa dessas visitas, encontrei uma antologia de autores sombrios do século vinte. Nem sei por que abri o livro, talvez para fazer um tipo de intelectual e impressionar a estagiária que era o real motivo que me levara àquele lugar, mas enfim, devia ter uns trinta autores na coletânea. Um mais chato e “sombrio” e distante dos meus interesses que o outro. Aquilo sinceramente me aborrecia, e eu já ia dar o bote na estagiária quando um cara de testa baixa e esquisito – cujo nome me lembrava espetinhos de carne moída – procurava um cavalo para uma emergência, pois o seu animal havia morrido congelado “consumido pelas fadigas do inverno”. Fadigas! Como assim, no plural? Várias fadigas, e um cavalo morto!
O narrador mobiliza Rosa, sua criada, para ajudá-lo na empreitada de achar um cavalo. Ao fundo uma tempestade de neve, e o defunto de outro cavalo. A emergência paira no ar. Não necessariamente a emergência de achar um cavalo substituto. Mas de acontecer uma desgraça. Nesse ponto, o leitor sabe que um homem agoniado precisa de um cavalo, mas não faz idéia aonde ele quer chegar. Estou falando dos dois primeiros parágrafos do conto “Um médico de aldeia”. Pois bem, ele vai atrás do animal e, confuso e inopinado (como se um pesadelo o conduzisse), mete os pés num curral de porcos. Lá dentro, num espaço exíguo, encontra um homem acocorado, pronto a servi-lo: “quer que eu aparelhe?”.
Eis o registro que escapou a Borges. O registro do pesadelo. Kafka põe o pesadelo em seqüência, e prescinde de efeitos especiais. Isso quer dizer que as situações acontecem independentemente da vontade do narrador. E o leitor assume os sustos e sobressaltos que deviam ser do narrador, o qual se submete aos acontecimentos, porém de uma maneira não completamente passiva. Muito pelo contrário. O narrador reage com violência proporcional. Taí a diferença entre literatura e pesadelo. Estou falando da mão do autor, que , digamos, não se deixa levar por personagens e situações impostas por quem quer que seja. O narrador de Kafka dá o troco o tempo inteiro.
Vejam só: o narrador agoniado conseguirá dois cavalos do homem que “morava” no curral de porcos. O preço do “achado” cairá todo nas costas de Rosa, a criada. Ela é quem pagará pelo pesadelo: o homem-porco cravará uma mordida em seu belo e alvo rosto. Não seria exagero dizer que os leitores “usufruem” da mesma condição da criada: vítimas impotentes, ao dispor de Kafka.
Imediatamente vem a reação do narrador: “Quer que o mande chicotear?”. No entanto, quase que simultaneamente, ele reconhece a ajuda do homem-porco e sente-se sinceramente agradecido pela bela parelha de cavalos que lhe fora presenteada. O que isso quer dizer?
Digamos que os defuntos relincham vigorosamente. A partir daí, o “pesadelo” do homem-porco, e o “pesadelo” no narrador vão confluir tacitamente em direção à pobre criada: que tem o “justificado pressentimento de não poder escapar ao destino”. Nem ela, nem o leitor.
No parágrafo seguinte – sem o uso de efeitos especiais (isso que é admirável em toda a obra de Kafka) – ficamos cientes de que o narrador do pesadelo é um médico de aldeia. De um curral de porcos somos trasladados para o quarto de um moribundo. A mesma atmosfera sufocante e febril: como se o improvável pudesse ser verossímil. O doente pede para o médico de aldeia deixá-lo morrer, e o médico debocha da situação, ignorando o pedido do moribundo e lembrando-se da criada que ficara à disposição do homem-porco. Esse expediente de deixar as coisas suspensas, de sugerir uma situação e largá-la para ameaçar usá-la mais à frente (embora as coisas fiquem mesmo no meio do caminho) é comum – já disse – na obra da Borges.
Os cavalos são testemunhas do bafio do diabo, e enfiam a cabeça para dentro do quarto de ar quase irrespirável: são observadores do pesadelo da família e dos leitores, o médico de aldeia (agora já na pele assumida do narrador) não se espanta, e pensa no próximo lance: “o melhor é voltar para casa”. Porque, pasmem, a situação do doente, afinal de contas, não era tão grave!
Kafka é surpreendente: “se não tivesse calhado serem cavalos, teria de deslocar-me puxado por porcos”. Enquanto isso, Rosa, a criada (e nós, os leitores) nos encontramos em péssimos lençóis: “passar receitas é fácil, mas fazer as pessoas compreender as coisas é difícil”.
A literatura é um chamado sem necessidade, parece que essa é a sugestão de Kafka. Por isso mesmo, resolve ocupar-se de algo mais premente, e descobre que o doente, ora … devia mesmo estar doente. Um pesadelo não substitui outro, mas pode ter detalhes que, digamos, o valorize: “do lado direito, junto à anca, tinha uma ferida aberta do tamanho da palma da mão (…) e do estreito interior da ferida coleavam em direção à luz uns vermes de grossura e comprimento do meu dedo mínimo, cor-de-rosa e manchados de sangue”. Os cavalos relinchavam, e a família se dava por satisfeita. Agora o médico tinha uma ocupação.
Serviria ele mesmo ao pesadelo que criara. Nada melhor que os seus personagens dispam-se de suas crenças, e o dispam, a ele, médico de aldeia – a essa altura despojado de sua autoridade, de sua criada, e à mercê da própria sorte: Um coro de crianças, orientado por um professor à frente, posta-se diante da casa, e canta: “tirem-lhe a roupa que ele nos trata, Se não nos cura, aqui mesmo se mata!”.
Ali estavam o médico, o narrador e Kafka: agora mais do que escravos do pesadelo, condenados pelo próprio pesadelo, e – apesar de tudo – senhores de si mesmos. Façam o que quiserem: vocês querem me colar à ferida que não curei?! Ótimo, somos o sádico e os masoquistas de nós mesmos, nós não inspiramos confiança e estamos aqui para purgar pelos nossos crimes!
O moribundo reage, e tenta esboçar uma sentença: “em vez de curar-me, vem me roubar o leito de morte”. Mas seria isso tão grave? O médico de aldeia acha que não, e – colado aos vermes do doente – contra-argumenta: “Sua ferida não é assim tão grave. Muita gente dá o flanco e mal consegue ouvir o machado na floresta, e muito menos que ele se aproxima”. O moribundo sossega, e o médico de aldeia imediatamente pensa numa maneira de sair daquela situação – ora, era mais do que óbvio que a única alternativa que lhe restava era recorrer ao próprio pesadelo, que estava à mão, logo ali, do lado de fora da janela a observá-lo: Os cavalos!
No entanto, como eram pesadelos antes de serem cavalos, a reação desses animais ao comando do médico é de obediência e semi-empacamento: “arrastamo-nos pelos ermos cobertos de neve”, diz o médico escapado do próprio pesadelo, mergulhado em outro muito pior. Ao fundo, a canção das crianças ecoava: alegrai-vos, doentes de todo lado, o médico está junto a vós, deitado!
Ou seja, Kafka foi o responsável pela forma e o pesadelo pelo conteúdo. Resultado: o tempo presente entrelaçado com o eterno; a criada e os leitores são (e serão) vítimas consumadas do homem-porco/da obra-prima. Ou do falso alarme: e o médico-narrador seminu está sendo (e será por toda a eternidade) arrastado lentamente pelos seus pesadelos na mais triste das estações do ano, “já não há mais remédio”. De certa forma, Borges não estava incorreto. Só que, em vez de apenas considerar a iluminação do presente pelo passado e vice-versa, poderia ter sido mais generoso, e ter atribuído ao “nunca mais” o tempo da eternidade. A eternidade cabe dentro do corralito imaginado por Borges, ponto para o argentino. Mas também ultrapassa esse limite. O corvo de Poe reproduz esse pressuposto, e é assim que Kafka encerra seu conto. Portanto, caros leitores, vos asseguro que não estamos diante de mais um registro banal nem tampouco de uma mera coincidência.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.