Quando inventaram, tinha o nome de “Vale Tudo”. Hoje, como acontece com quase tudo, ganhou um nome pomposo em inglês: Mixed Martial Arts, ou Artes Marciais Mistas. Sei que corro o risco de apanhar amanhã dos praticantes, mas a mim aquilo me parece um mero festival de pancadaria boçal, estúpida e sem sentido, que merecia ter mantido o nome original: “Vale Tudo”.
E não espanta que esse festival de violência e boçalidade ganhe cada dia mais espaço e conquiste mais o interesse das pessoas. Porque “Vale Tudo” vai virando o nome do jogo em todas as áreas, incluindo a política. E no que me afeta mais diretamente: a intromissão da política no exercício do jornalismo. A cada dia aumenta mais a pressão – e o que é mais triste, a pressão dos leitores – para forçar o jornalismo a abandonar o necessário equilíbrio e distanciamento – sem o qual é impossível se fazer bom jornalismo – para adotar um lado, para passar a ser porta-voz de uma das correntes nessa disputa cada vez mais estreita e maniqueísta atualmente vivida na política brasileira.
Aos exemplos.
Nos últimos dias, uma senhora passou a ser frequentadora dos espaços de comentários do Congresso em Foco insistindo na tese de que estamos alinhados à tal “imprensa golpista” que, dizem, instalou-se no Brasil com o propósito de desestabilizar os governos do PT. Primeiro, fez críticas à entrevista feita com o jornalista Amaury Ribeiro Jr., autor do livro “A Privataria Tucana”, manchete do site na segunda-feira, porque a entrevista, além de falar das graves irregularidades cometidas nos processos de privatização no governo Fernando Henrique Cardoso, mencionava também que houve um acordo entre o PT e o PSDB para que o assunto não fosse investigado na CPI do Banestado e que boa parte do livro tratava também do alucinado fogo amigo dentro do PT na campanha à Presidência de Dilma Rousseff, concluindo que “não há santos na história”.
No dia seguinte, a manchete do site era uma entrevista com a ex-vereadora de São Paulo Soninha Francine, na qual ela dizia que quando era filiada ao PT o partido exigia dela que cobrasse caixinha de 5% dos seus funcionários. Então, a mesma senhora comentou o seguinte: “o site dá espaço para isso e ignora o livro ‘A Privataria Tucana’”. A senhora podia até não ter gostado do teor da matéria, mas ela sabia muito bem que o Congresso em Foco não ignorara “A Privataria Tucana”. Ela tinha feito comentários à matéria! E o livro de Amaury, e a privataria, foi manchete do site também em outras duas ocasiões, aqui e aqui. Como cobrar ética dos outros se lhe falta a mesma ética?
O comportamento correto, então, seria do livro de Amaury ignorar o que ao PT não convém? Ou, se o livro é um dos mais vendidos no momento, se traz uma robusta quantidade de documentos que de modo algum podem ser desprezados, ignorar qualquer outra notícia que possa competir com ele?
No que esse comportamento difere – além da posição oposta – do esforço risível que alguns fazem de desqualificar o conteúdo do livro reportagem de Amaury Ribeiro Jr.? Ou de desqualificar o próprio Amaury, provavelmente o repórter mais premiado da sua geração?
Soninha Francine faz uma declaração, em on, assumida portanto, a respeito de uma prática que diz ter presenciado no PT. Devia ter sido ignorada? Então, o silêncio sobre a prisão de João Faustino, suplente do presidente do DEM, senador José Agripino (RN), por um envolvimento num esquema de fraudes no Detran, também é válido (no Congresso em Foco, a prisão de João Faustino foi manchete aqui, aqui e aqui)?
Os integrantes das torcidas, nos seus respectivos lados do octógono onde se dá o “Vale Tudo”, parecem começar a julgar lícita e válida a máxima, vazada das antenas parabólicas da Globo, que derrubou Rubens Ricupero do Ministério da Fazenda de Itamar Franco: “O que é bom a gente mostra; o que é ruim a gente esconde”.
Será que os torcedores do “Vale Tudo” político não percebem que veículos de comunicação que assumem claramente um dos lados na disputa política e que passam deliberadamente a agir para distorcer os fatos a favor do lado que escolheram se anulam em termos de credibilidade? Que toda denúncia feita pelo lado assumidamente tucano será relativizada pelo lado petista, e vice-versa?
E, aí, enquanto os dois lutadores se engalfinham na lama, para delírio das suas torcidas fiéis, vai o país afundando junto. Porque tudo passa a ser mera disputa eleitoral. Vence o mais forte. Ou o que tem maior torcida.
O dia em que as circunstâncias me impedirem de buscar no jornalismo a objetividade, o equilíbrio, a equidistância, de pretender a imparcialidade como meta – ainda que sabidamente inatingível –, eu vou preferir deixar de ser jornalista.