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Após o enterro fúnebre da medida provisória 232, com a qual o governo pretendia elevar a tributação das empresas prestadoras de serviços, parlamentares de diversos partidos passaram a ser bombardeados por um lobby que junta do mesmo lado grandes e micro empresários, sindicalistas, tributaristas, consultores e profissionais liberais. Esse movimento de expressiva abrangência social empunha uma só mensagem: é preciso pôr um freio na fúria arrecadadora da administração pública, que estaria ultrapassando os limites do suportável no governo Lula. Se no passado foi a Inconfidência Mineira quem canalizou a revolta contra as taxações abusivas, pode-se, com certa liberdade de estilo, falar agora em uma espécie de “inconfidência maneira”: uma democrática gritaria contra as regras em vigor, que inclui desde a articulação pela aprovação da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa até protestos contra a parte que estados e municípios amealham do bolo tributário. O governo tem pela frente duros desafios. Da MP 232, como se sabe, sobrou apenas a parte reconhecida como justa pelas bancadas da situação e da oposição – a correção da tabela do Imposto de Renda, que reduz a mordida dada nos salários pela Receita Federal. Mas a questão tributária continua em pauta, primeiro, porque a mesma 232 sequer passou pelo Senado. Depois, porque a Câmara está para retomar o debate sobre a reforma tributária iniciada em 2003 e cuja complementação é desde então aguardada com ansiedade. É nesse ambiente que os grupos de pressão recorrem ao Legislativo para impedir que o governo tire mais de uma população que transfere anualmente ao setor público, sob a forma de impostos, mais de um terço do que produz. Atores fundamentais desse movimento, os advogados tributaristas têm perpetrado discursos inflamados contra o atual estado de coisas. Reclamam não apenas da volúpia com que o Ministério da Fazenda se dedica à arte de garfar os contribuintes. Mas, sobretudo, do descaso com que estariam sendo tratados princípios do direito, as boas práticas administrativas e normas consagradas pela jurisprudência. Fazem isso, porém, em encontros privados. Em público, costumam evitar declarações que os ponham em confronto com os seus habituais adversários no ringue profissional, a Receita Federal (nas instâncias administrativas) e a Procuradoria da Fazenda Nacional (nos tribunais). Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie e um dos mais reconhecidos tributaristas brasileiros, é uma exceção. Autor de mais de 40 livros, afirma para o gravador ligado: “Com a experiência de 47 anos de advocacia, falo que insegurança jurídica como existe hoje nunca houve no país”. Ives, em entrevista ao repórter Tarciso Nascimento, acusa o governo Lula de promover o “caos tributário”. “Somos contribuintes escravos da gleba. Somos escravos de pagamento de tributos”, protesta. Na sua opinião, o governo tem atropelado a lei e a jurisprudência para tapar os rombos causados pelos gastos administrativos desnecessários e pelos juros da dívida pública. Revela indignação ao tratar daquele é hoje um dos temas tributários mais candentes nos tribunais: o chamado crédito-prêmio do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). O instrumento foi criado para retirar dos preços finais das exportações brasileiras o impacto da tributação ocorrida ao longo da cadeia produtiva, conforme a velha máxima segundo a qual país com juízo não ousa exportar tributo. Mesmo considerado legal pela virtual unanimidade dos tributaristas, o mecanismo corre o risco de sucumbir, no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para Ives Gandra, não só os exportadores têm direito ao crédito que buscam, como deveriam ser indenizados pela batalha legal a que foram obrigados a travar para receber o que lhes pertence. Um exemplo, em síntese, do que chama de “insegurança jurídica”. O advogado desdenha até mesmo o recente recorde batido pelo Brasil na área de exportações: “É ridículo exportar US$ 100 bilhões em 12 meses, quando todo o mundo cresceu muito mais. O México cresceu mais. A Argentina, depois da crise, está crescendo muito mais do que o Brasil. Lá, estão facilitando. Nós aqui estamos dificultando.” Leia a seguir o que Ives Gandra disse ao Congresso em Foco. “O Brasil não tem estadistas, mas apenas cobradores de impostos. O governo não pensa no desenvolvimento nacional” O senhor acha que o governo raciocina exclusivamente sob a ótica do caixa? Eles estão vendo pela ótica do caixa, mas com olhar pequeno. Como o Brasil não tem estadistas, mas apenas cobradores de impostos, o governo não está pensando no desenvolvimento nacional. O crédito-prêmio de IPI vai arrebentar com muitos exportadores, se por acaso prevalecer a tese do governo na Justiça. E o governo está louco atrás disso porque na verdade teria mais dinheiro. Estou absolutamente convencido de que esse tipo de política não vai levar o Brasil a um bom lugar. E todo mundo está eufórico, porque estamos crescendo um pouco, só porque não temos a capacidade de fazer comparação com outros países. No dia em que olharmos para fora e não para dentro, que tivermos olhares estadistas e não míopes, vamos perceber que o Brasil está crescendo muito pouco. O Brasil tem mais potencialidade do que todas as outras nações latino-americanas, e está crescendo menos que elas. Esse é um fator extremamente negativo. E o governo é o principal responsável por essa situação. No Brasil, segundo pesquisa recentemente publicada pela revista Exame, cria-se um tributo novo a cada quatro meses. Não é alarmante? É evidente, porque o Brasil é uma República fiscal. Na verdade, nós somos contribuintes escravos da gleba. Somos escravos de pagamento de tributos. Estamos, na verdade, como aqueles escravos medievais que tinham serviços feudais. O contribuinte brasileiro é um escravo da gleba que serve aos senhores feudais. “A grande reforma que o Brasil deveria fazer ninguém fala. Como cortar gastos. Como cortar apoio aos amigos do rei. Como cortar os favores aos correligionários” Seria necessária uma reforma tributária? Eu acho que a reforma tributária é menos necessária do que uma reforma de mentalidade de gastos. A grande reforma que o Brasil deveria fazer ninguém fala. Como cortar gastos. Como cortar mordomias. Como cortar apoio aos amigos do rei. Como cortar os favores aos correligionários. Como cortar esse crescimento monumental das despesas inúteis. Como cortar compras desnecessárias, como Ômegas e aviões. Como cortar as despesas de cartões de créditos que ninguém quer, inclusive, dizer quanto é que se gasta. Como cortar tudo aquilo que representa usar mal. Como cortar essas indenizações milionárias em favor das vítimas do regime militar que não poderiam ser dadas nunca, porque estão fora do que prevê a Constituição. As pessoas são indenizadas como se nunca tivessem trabalhado depois de reagirem contra o regime militar. Isso representa nada menos do que R$ 3 bilhões. Há muitas coisas que deveriam, evidentemente, ser cortadas. A grande reforma do Brasil é uma reforma de mentalidade e de corte de gastos. Não é uma reforma tributária. Precisamos, principalmente, de menos burocracia e de segurança jurídica. O sistema tributário brasileiro está consolidado? Não requer mudanças? Não está consolidado. Nós não temos um sistema tributário. Nós temos o sistema tributário no papel. Temos um caos tributário, um manicômio tributário. Na Europa, tem o IVA (Imposto sobre Valor Agregado) para os impostos indiretos. Aqui, temos o IPI, o PIS, o ICMS, o ISS, o ICMS, a Cofins, o IOF, a CPMF. A mesma operação, para a qual existe na Europa um tributo, é tributada no Brasil por sete ou oito tributos. Então, não se pode falar em sistema. Posso falar, sim, em caos tributário. O Brasil é o único país que consegue viver com o caos tributário. E caos nas três entidades federativas, União, estado e município, cada uma delas criando cada vez mais tributos. Com isso, chegamos à maior carga tributária do mundo, se nós analisarmos qualidade do serviço público prestado, que é péssima no Brasil. Nível de carga tributária maior do que os 17 países da União Européia e, ao mesmo tempo, a autoprestação do serviço público, que o cidadão brasileiro é obrigado a fazer, porque o Estado não faz. “O Brasil está crescendo muito menos que os outros. O senhor acredita que o padrão tributário brasileiro onera as nossas exportações? Ele afeta, evidentemente, na medida em que a carga tributária hoje é superior a 1/3 do PIB. Essa carga tributária arrecadada, nas leis do papel, é superior a 50%. Ou seja, aqueles que pagam tudo estão transferindo 50% da sua renda bruta para o setor público, e isso de forma direta ou indireta interfere nas exportações. A previsão de crescimento econômico mundial, neste ano de 2005, é de 4,3%. A previsão dos países emergentes é superior à do Brasil. Países no nível do Brasil devem crescer em média de 5% até 8,5%, como é, por exemplo, o caso da China. No Brasil, a previsão de crescimento, segundo os órgãos internacionais, é de 3,7%. Ora, quando está crescendo 3,7%, o Brasil está crescendo muito menos que os outros. Está perdendo terreno por três fatores. Primeiro: carga tributária elevadíssima. Segundo lugar: burocracia completamente, absolutamente esclerosada. Gasta-se uma fortuna em despesas funcionais. Verificamos que, apesar do aumento da carga tributária, houve um aumento muito maior de despesas desnecessárias. Isso é um peso que faz com que o que foi déficit em serviços públicos – por exemplo, aquelas despesas necessárias no campo social – foi gasto em aumento das despesas apenas de administração, como pagamento de funcionários, contratação de servidores etc. O Brasil tem uma máquina administrativa muito maior do que precisa. Essa burocracia esclerosada e a carga tributária elevada somam-se a um terceiro fator: juros calibrados acima do necessário. Porque pra você combater um eventual risco de fuga de capitais, nossos spreads são muito maiores. Que nós tenhamos juros mais elevados do que o resto do mundo, isso é concreto, mas não no nível que eles estão… Por isso, é preciso qualificar as coisas quando se diz que o Brasil exportou US$ 100 bilhões em 12 meses. Na verdade, todo mundo está crescendo e o Brasil está crescendo menos. O México, com uma população menor que a do Brasil, exporta US$ 200 bilhões por ano. Quer dizer, nós estamos muito aquém dos outros. Qual a nossa participação no comércio internacional? Um pouco mais de 1%, o que é ridículo. Então, a carga tributária excessiva prejudica as exportações. O problema, entretanto, não se dá tanto no nível estrito da carga tributária. A Secretaria da Receita Federal é obrigada a seguir orientação, a arrecadar para fazer face aos gastos. O problema da nossa carga tributária elevada é o desperdício na administração pública. São os gastos desnecessários. É a incapacidade de cortar. Por isso, vem agora o governo (na proposta da Lei de Diretrizes Orçamentárias) fixar um teto para a carga tributária. Se o governo gastasse menos e melhor, estou absolutamente convencido: teríamos uma carga tributária mais justa e mais palatável. Existe muita diferença no tratamento dispensado às exportações por países como México, Argentina e União Européia e o Brasil? Existe. Para começar, o sistema de compensação de impostos aqui é muito mais complicado. Há muita burocracia, e tudo é difícil no Brasil. Há sempre um funcionário para exigir um carimbo a mais, para encontrar uma vírgula que não foi seguida e para dificultar a vida de quem pode contribuir para trazer divisas para o país. Por outro lado, a própria Receita Federal dá determinadas orientações e depois volta atrás. Um dos aspectos que mais prejudicam o Brasil e que não prejudicam os outros países chama-se insegurança jurídica. Quando o governo diz uma coisa, não significa que isso é verdade. Ele pode revogar. Por exemplo, diversas empresas estão no momento, depois de terem investido com autorização da Receita Federal, do governo federal, lutando na Justiça para que seja cumprida uma regra que elas seguiram conforme estabelecida e que depois o governo decidiu contrariar. É incrível. O Estado, primeiro, diz que a empresa pode estar lá, que aquela é a orientação vigente. Depois que a empresa se instala, faz seu planejamento, investe, o governo diz: “Não, nós erramos. Não soubemos analisar bem no mapa. Vocês não estão mais aí”. Aí, volta tudo. Então, uma das características que mais prejudicam o Brasil chama-se insegurança jurídica. Insegurança gerada pela Receita Federal, que muda constantemente as orientações dadas pelo governo federal. Falo com a experiência de 47 anos de advocacia: insegurança jurídica como existe hoje nunca houve no país. No passado, quando o governo afirmava alguma coisa, era responsável por aquilo e isso prevalecia. Hoje, quando as autoridades dizem alguma coisa e a empresa segue, não tem segurança nenhuma. Pode vir uma outra autoridade em seguida dizer: “Oh, nós erramos e, porque nós erramos, vocês terão de pagar pelo nosso erro. Vocês têm que pagar o Imposto de Renda e todos os tributos porque os senhores pensaram que estavam isentos, porque nós dissemos que os senhores estavam, mas nós chegamos à conclusão de que erramos e os senhores têm de pagar por nossos erros”. Essa insegurança, evidentemente, traz uma carga tributária adicional. Então, o governo diz agora: “Vamos atrás dos sonegadores”. Tem que ir atrás dos erros que ele próprio comete. O governo deveria pagar indenizações pelos prejuízos que causa a todas as empresas. Pela insegurança jurídica, pelo problema da burocracia esclerosada que tudo dificulta e pelos créditos que são difíceis de serem recuperados quando as empresas têm direito, porque o governo não gosta de devolver aquilo que é obrigação dele devolver. Gosta de cobrar, mas não gosta de devolver. Então, é toda essa estrutura, que eu chamo de burocracia esclerosada, que nos impede de acompanhar os outros países. Lá, cada vez que se fala em exportação, todo mundo auxilia. Na União Européia, as exportações são fortemente estimuladas. Todos, tanto o governo como a sociedade, querem facilitar aquele que pretende exportar. Aqui é o contrário. Na Bélgica, você cria uma empresa em dois dias. No Brasil, leva 100 dias, 50 dias, tem que passar por “n” carimbos. Nós seguimos aquilo que se chama da filosofia bicipital. Isto é, o que impressiona aqui não é a lei. É o bíceps do funcionário que tem que dar o carimbo. Se ele não quiser dar o carimbo, porque tem outras coisas a fazer, o processo pára. Então, estou absolutamente convencido de que nós temos uma má performance na área de exportações. Num país da dimensão do Brasil, é ridículo exportar US$ 100 bilhões em 12 meses, quando todo o mundo cresceu muito mais. O México cresceu mais. A Argentina, depois da crise, está crescendo muito mais do que o Brasil. Lá, estão facilitando. Nós aqui estamos dificultando. Se nós podemos criar dificuldades, por que facilitar? É essa a mentalidade do governo. “Caso exemplar de insegurança jurídica é o crédito-prêmio. O senhor acredita que o país está tributando o seu próprio crescimento econômico? Está. É evidente. Por que o Brasil cresce pouco com a potencialidade que tem? Cresce pouco, cresce menos que os outros países porque eles facilitam o crescimento. E nós oneramos com tributos, juros e burocracia. Não interessa saber se estou crescendo, quero saber se estou crescendo na mesma proporção que os meus concorrentes. Você pode comparar com uma olimpíada. Aquele brasileiro lá conseguiu correr muito mais do que os desportistas da mesma competição corriam há dez anos ou 20 anos. Mas não tanto quanto os corredores de outros países, todos muitíssimo à frente dele. Então, ele não foi classificado. Em matéria de competitividade internacional, temos que analisar a performance externa, não a interna. Se os outros países têm performance externa melhor do que o Brasil, estamos perdendo terreno. E isso acontece porque o Brasil tem mais tributos que os outros, mais juros que os outros e burocracia mais esclerosada. Qual o tributo que mais onera as nossas exportações? Todos. Porque o Imposto de Renda, quando é excessivo, está onerando as exportações. Os impostos indiretos – a Cofins, o PIS, o IPI, o ICMS etc. – estão onerando, mesmo quando se diz que podem ser compensados. Um caso exemplar de insegurança jurídica é o crédito-prêmio. O governo garantia o crédito-prêmio de exportação a todos aqueles que tinham esse direito. Agora, diz: “Não, eu errei. Estou errando desde 1983. Agora, os senhores terão que me pagar tudo aquilo que eu dei para os senhores”. Se prevalecer essa tese do governo, em relação ao crédito-prêmio, está aberto o caminho para arrebentar com todas as empresas, não apenas as empresas de exportação. Vai ficar definido o seguinte: “eu, governo, erro e vocês, empresas, têm que pagar pelo meu erro”. Para o governo, será ótimo. Quanto mais errado for, mais se beneficiará do seu próprio erro. Ou seja: eu me beneficio da minha própria torpeza, porque orientei mal os senhores e agora eu vou ganhar com isso. É isso o que está em questão no debate do crédito-prêmio de IPI: a vitória ou não da tese da insegurança jurídica. Prevalecendo o que o governo tem defendido, todas as empresas exportadoras que tiveram benefício expresso terão que devolver aquele imposto que deixaram de pagar e que o governo dizia que elas não teriam de pagar. Se prevalecer essa tese, vamos arrebentar grande parte dos exportadores brasileiros. A Receita Federal quer matar a galinha dos ovos de ouro. É o que está acontecendo. A carga tributária está matando muitas empresas com grande capacidade. Por essa razão, na comparação internacional, o Brasil cresce menos. E cresce menos exclusivamente por culpa do governo. Na sua avaliação jurídica, as empresas têm direito ao crédito-prêmio de IPI? Inteiramente. Para quem advoga há 47 anos, é difícil compreender até mesmo como ousam questionar esse direito. Na minha opinião, o governo deveria ser responsabilizado com ações de indenizações pelos prejuízos que causou, porque todos seguiram de boa fé a orientação do governo. Agora, as empresas são obrigadas a contratar advogados, a se defenderem, são expostas na imprensa como se tivessem feito algo de errado. Tudo porque seguiram a orientação do governo. Deveriam, repito, ser indenizadas pela situação a que foram levadas. De acordo com estimativas da Associação Brasileira de Comércio Exterior), a tarifa sobre a importação de bens de capital oscila entre 40% e 60%. É um valor alto? Elevadíssimo, porque isso também dificulta a possibilidade de se criar qualidade e competitividade dos nossos produtos para exportação. Aqui no Brasil, tudo é tributado. No Brasil, aquele lema americano de que impostos e a morte são as únicas coisas certas no país não faz muito sentido. Aqui, os impostos são muito mais certos do que a morte, porque a morte você pode atrasar um pouco, os impostos você não pode atrasar nunca. |