Maria Dionne de Araujo Felipe *
Viajo e me encontro na Revolução Francesa. O ano é 1789. No meio de imensa convulsão política e social, a monarquia absolutista entrou em colapso. Privilégios feudais, aristocráticos e religiosos sucumbem-se diante dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade (Liberté, Égalité, Fraternité). Permanecem as desigualdades entre homens e mulheres.
Século 20: Alguns países eliminam o estatuto jurídico de inferioridade das mulheres na vida civil.
A história conta que a Nova Zelândia foi uma das últimas grandes massas de terra colonizadas por seres humanos. E foi justamente esse país o primeiro a reconhecer às mulheres o direito de voto no ano de 1893. Quase dez anos após, a Austrália a seguiu e alguns outros países também o fizeram, mas, somente após a Segunda Guerra, houve um avanço em países como a Itália e a França.
No Brasil, essa luta durou mais de 100 anos, uma vez que o marco inicial das discussões remonta a meados do Século 19. Apenas em 1934 a Constituição conferiu o direito de voto feminino para as mulheres que exerciam função pública remunerada. A Constituição de 1946 finalmente liberou o voto para todas as brasileiras e o Estado pioneiro no reconhecimento do voto feminino foi o Rio Grande do Norte. A Lei Eleitoral do Estado de 1927 determinou em seu artigo 17: “No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”. Com essa norma, mulheres das cidades de Natal, Mossoró, Acari e Apodi alistaram-se como eleitoras em 1928.
A importância da conquista do direito ao voto inserida nesse contexto de avanço democrático veio evoluindo no Brasil ao ponto dos recursos do Fundo Partidário serem aplicados na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, conforme percentual fixado pelo órgão nacional de direção partidária, e ter sido criado um percentual mínimo de participação feminina nas eleições, bem como um percentual mínimo de participação política feminina inserido na propaganda partidária gratuita.
Volto ao Século 19, Rio de Janeiro, ano de 1875. No município de Macaé, nascia Myrthes Gomes de Campos, a primeira mulher a exercer a advocacia no Brasil. Embora tenha concluído o bacharelado em Direito em 1898, apenas em 1906 ingressou no antigo Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil, atual Instituto dos Advogados do Brasil, condição necessária para o exercício profissional da advocacia. Foi a ousadia de uma mulher chamada Myrthes que nos permitiu ser advogada. No entanto, antes mesmo de ingressar na instituição, Myrthes, em 1899, realizou sua primeira audiência. Atuou como Defensora no Tribunal do Júri. E ganhou o júri deixando o registro da importância histórica da atuação de uma mulher: “Cada vez que penetrarmos no templo da justiça, exercendo a profissão de advogada, que é hoje acessível à mulher, em quase todas as partes do mundo civilizado, […] devemos ter, pelo menos, a consciência da nossa responsabilidade, devemos aplicar todos os meios, para salvar a causa que nos tiver sido confiada. […] Tudo nos faltará: talento, eloquência, e até erudição, mas nunca o sentimento de justiça; por isso, é de esperar que a intervenção da mulher no foro seja benéfica e moralizadora, em vez de prejudicial como pensam os portadores de antigos preconceitos.” (O País, Rio de Janeiro, p. 2, 30 set. 1899).
PublicidadeE, assim, a Myrthes, pequenina e vivaz, dominando logo pela sua agudeza de espírito e amenidade no trato, no dizer do criminalista Evaristo de Moraes (1871-1939), foi abrindo os caminhos, dedicando-se profundamente aos estudos jurídicos e à causa das mulheres e a sua atuação na sociedade. Foi servidora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, colunista efetiva do Jornal do Comércio, autora de importantes obras no campo da jurisprudência, sempre preocupada com os direitos das mulheres, negados e incompreendidos.
O historiador Barros de Vidal, contando sobre Myrthes, e aqui eu peço para transcrever o seu texto em linguagem livre, sem a elegância da escrita do ano de 1920, diz que “quando se formou em Direito, Myrthes tinha apenas o desejo de viver da profissão, de ser somente uma advogada, como muitos advogados haviam, mas os obstáculos que o seu valor ia transpondo, criaram-lhe uma mentalidade nova e fizeram-na aceitar o desafio. Ao seu espirito combativo a mística herdada dos romanos pelos nossos jurisconsultos se afigurava como uma afronta imperdoável. Queriam luta – pois ela lutaria e certa de vencer pois a boa causa era a sua. Mas contra os ardores com que se empenhava no combate levantavam-se as exigências da sua índole e todas as vozes do seu temperamento sereno. Inimiga dos cartazes produzidos pelo escândalo via-se num dilema bem amargo para a sua sensibilidade. Calar-se, renunciar seria abdicar a ela e não o podia fazer, pois não via a questão num ponto de vista pessoal. Estava em jogo o futuro de toda mulher que quisesse ser advogada! Era a pioneira a desbravar o matagal das ideias velhas, incompatíveis com o século já iluminado de ideias e ações”.
Ano de 1975. O movimento feminista ganhou força. Em 1975 a Assembleia das Nações Unidas organizou a primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, na Cidade do México. Foi assim reconhecido o direito da mulher à integridade física, inclusive a autonomia de decisão sobre o próprio corpo e o direito à maternidade opcional. No contexto da Conferência, foi declarado o período de 1975-1985 como “Década da Mulher”.
A principal figura feminista do catolicismo é uma Maria. Maria, mãe de Jesus. É o mais comum dos nomes femininos nos Cartórios Civis do Brasil. Não por ironia, quase dez anos após uma Conferência Mundial reconhecer o direito da mulher à integridade física, uma Maria, Maria da Penha, ficou paraplégica após um tiro de espingarda disparado por seu marido à época. Essa Maria não calou. Essa Maria lutou. Denunciou o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos face à indiferença do país em relação à violência doméstica que sofrera. Em 2001, o Brasil foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra às mulheres.
O caso de Maria da Penha foi incluído pela ONU Mulheres entre os dez que foram capazes de mudar a vida das mulheres no mundo.
Agosto de 2006. A Lei Maria da Penha cria mecanismos para cobrir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Março de 2016. Em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, a Seccional da OAB do Distrito Federal instituiu a medalha Myrthes Gomes de Campos, a mais alta comenda da Advocacia do DF, com o objetivo de prestigiar o espaço conquistado pelas mulheres no exercício da advocacia. Nada mais justo que a Medalha levasse o nome daquela Mulher, que foi a pioneira e desafiou os preconceitos para abrir os espaços para nós, Advogadas. Aquele 2016 foi também consagrado pelo Conselho Federal da OAB como o Ano da Mulher Advogada. Os direitos objetivos e subjetivos das mulheres estão consagrados e institucionalizados no mundo inteiro. A conquista desses direitos não altera o quadro de discriminação, especialmente nos países subdesenvolvidos.
É grande o fosso existente na efetividade do direito à educação, à saúde, à igualdade salarial, à segurança pessoal. Hoje as muitas Marias ocupam posição de destaque em todas as áreas no país, mas os indicadores de acesso são marcados pelas desigualdades. Persiste o preconceito em relação à raça, à renda e à etnia. Os salários são indignos. A violência doméstica persiste.
Precisamos de políticas públicas transparentes que reduzam a educação discriminatória no ambiente escolar, protegendo as nossas meninas de preconceitos homofóbicos e racistas. Precisamos de políticas públicas que alcancem a proteção à saúde da mulher, nelas inserida o direito de proteção ao corpo, ao controle de natalidade, à saúde, inclusive mental. Precisamos de políticas públicas que respeitem a condição da mulher na gestação e durante a maternidade. Nesse sentido, louváveis as conquistas conseguidas pela OAB/DF como a Lei Julia Matos (Lei 13.363/2016), que alterou tanto o Código de Processo Civil quanto o Estatuto da Advocacia ao prever suspensão de prazos para as mulheres gestantes, e outros direitos.
Ano de 2019. A luta que envolve a defesa das mulheres hoje une as vidas de uma mulher chamada Myrthes e uma mulher chamada Maria Dionne. Com singela emoção e um orgulho que não cabe no peito, fui escolhida pela OAB/DF para receber a Medalha Myrthes Gomes de Campos. Ao cumprimentar-me, o ofício menciona que “o intuito é homenagear advogadas e demais mulheres com efetiva atuação no cenário jurídico do Distrito Federal e nacional, com destaque na defesa dos direitos e dos interesses das mulheres, de suas prerrogativas e na valorização das mulheres que atuam perante o Judiciário Brasileiro”. A partir de hoje eu e Myrthes estamos irremediavelmente ligadas por força de uma mesma luta. Eu a levarei no peito.
O empoderamento feminino não significa apenas a devolução de todos os NÃOS que recebemos a vida inteira. Não do Estado. Não da Igreja. Ele passa pela universalização do SIM e da certeza que devemos ter o poder de escolher os nossos destinos. E, só assim, as Marias poderão, como na música do Milton, viver e amar como outra qualquer do planeta.
* Maria Dionne de Araujo Felipe é advogada, procuradora da Fazenda Nacional e escolhida para receber a comenda Myrthes Gomes de Campos.